Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

O que restou da escuridão - Capítulo 2 - Jane, 16 de Novembro de 1999

terça-feira, 23 de junho de 2009 às 10:00
- Oi! Tudo bem com você?
- Oi! Comigo está quase tudo bem. E com você?
- Estou trabalhando demais, mas essa é a vida. O que você tem feito?
- Nada em especial, não ando salvando o mundo e nem descobrindo a cura das doenças.
- Você ainda mora na Rua da Praia?
- Sim, moro. E você? Ainda morando na casa dos pais?
- Pois é, não anda fácil conquistar a completa independência. Nunca fui alguém que pudesse orgulhar-se de seus dotes culinários, ou até mesmo de lavar um banheiro como ninguém. Acho que eu não conseguiria sobreviver morando sozinho.
- Não é fácil trabalhar, estudar e ainda manter a organização de uma casa.
- É verdade. E como anda a Jane?
- Nada bem. Os médicos dizem que não vai durar muito. O câncer a pegou de jeito. Está internada há quase um mês.
É insuportável entrar naquele quarto, nem a família a visita. Dizem que não pertence mais a casa do pai, que perdeu-se no mundo, que, para eles, ela está morta. Coitada! Não anda nada bem nesses últimos dias, não reconhece mais ninguém.
Resiste, um dia após o outro, porque o corpo já nem sabe mais o que deve sentir ou o que sente, recebe doses sem fim de morfina, todos os dias.
- Como foi acontecer isso tão repentinamente?
- Ninguém sabe. Essas coisas são inexplicáveis.
- Isso não poderia ter acontecido com a Jane.
Eu ainda lembro de seus lindos cabelos loiros sendo levados pelo vento, enquanto o sol iluminava os inquietos fios dourados.
O perfume dela preenchia o ambiente quando ela entrava. Todos a queriam muito bem. A vida pode ser bem cruel com os seres bons.
- É verdade. Ela não merecia isso, na verdade, ninguém merece acabar daquele jeito.
Lembro também dos vestidos que ela gostava de usar. Parecia um anjo andando pelas tumultuadas ruas de Porto Alegre.
Os pores-do-sol eram sempre mais bonitos quando ela estava ao nosso lado.
O mais aterrorizante de tudo isso é ver que os amigos mais fiéis, aqueles que diziam que estariam sempre ao lado dela, foram os primeiros a se afastarem quando ficaram sabendo da doença. Eu também pensei em não visitar mais. Queria gravar na memória as risadas, as lágrimas, as paixões, os vestidos. Queria lembrar-me apenas do perfume e dos famosos fios dourados. Queria deixar no porta retrato da memória apenas a voz e o olhar.
Os mistérios dos tortuosos caminhos do destino podem ser assustadores.
- Ela ainda fala com você?
- Não, ela nem sabe mais quem é.
Acho que a antiga Jane já deixou aquele corpo há muito tempo. Aquela que está na cama daquele hospital, é só a carcaça, a capa, a cápsula.
Na verdade nada mudou. Ela ainda é linda, mas não está mais aqui. Acho até que ela não está mais em lugar algum. Talvez tenha virado vento, ou tenha virado raio de sol. Acho que agora ela é aquela margarida, que a gente colhe com pressa em um dia chuvoso, só para não chegar com as mãos abanando na casa da namorada. Ela pode ser também aquele gole de uísque que desce queimando a garganta. Ela pode ter se tornado a costumeira gargalhada entre amigos, a conversa ao redor da mesa de um bar, os segredos velados. Agora ela é um relicário de sentimentos não expressados, daqueles que torturam a alma, porém, sem eles, não conseguimos viver. Sem eles fica impossível seguir em frente.
- Deve ser difícil ser o único a ficar com ela.
- É difícil e mortificante. Cada vez que escorre uma lágrima pelas têmporas dela eu tenho vontade de acabar com tudo, tenho vontade de dar alívio para o sofrimento de seu corpo, de libertá-la desse martírio. Mas se eu fizesse isso, seria considerado um assassino.
Aquilo não pode ser a vontade de Deus. Acabar daquele jeito é cruel.
Eu não consegui acreditar quando o telefone tocou aquela noite, parecia que eu estava prevendo. Ela própria me contou a situação que viveria. Pediu que eu me afastasse, eu fiquei sem palavras. Naquela noite eu peguei o carro e, a única coisa na qual eu conseguia pensar era jogar-me em direção a qualquer poste.
Quando ela falou que morreria, de início, eu não entendi. Ela nem sabia que estava matando uma parte fundamental da minha alma. Não senti arrependimento algum em sua voz, estava plena, calma, conformada.
Acho que a própria Jane não tinha noção da proporção daquela notícia. Acho até que a sanidade foi embora antes de ela poder analisar toda a situação, melhor assim. Está alheia, alienada.
Acho que não choro mais ao falar dessa história porque já sei qual será o final. Sei também que, quando ela se for, perceberei que não estava preparado. Por que agora? 24 anos não é cedo demais?
Alguns dirão que é a vontade de Deus, que as coisas já estão pré-concebidas, que o que é para ser, simplesmente será.
A sensação de total impotência, em relação às vontades da morte, é torturante. Eu espero que este sofrimento não se arraste por muitos dias. Ela era um ser puro, simplesmente bom, vulnerável no alto de sua autoconfiança.
- O incompreensível serve para aprendermos que existem coisas que não valem a pena serem questionadas.
- Pois é, outro dia encontrei o Bruno. Segurou-se ao máximo para não perguntar nada sobre a irmã. Coitado, é uma simples marionete do pai. Ficamos em uma situação muito constrangedora. Não tínhamos assuntos em comum. Eu me despedi e ele seguiu em frente, sem se quer mostrar-se interessado pelo estado débil da irmã.
- Eu fiquei sabendo que ele passou uma temporada em Paris.
- Acho que sim, não tenho muita certeza.
- Eu vou tentar entrar em contato com você, para saber como andam as coisas.
- Vou esperar, o meu número ainda é o mesmo.
- Bem, eu preciso ir agora. Se eu não for, acabo por me atrasar para o trabalho.
- Tudo de bom para você.
- Para você também. Tchau.
- Tchau.