Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

O que restou da escuridão - Capítulo 3 - Fabrício, 17 de Novembro de 1999

terça-feira, 30 de junho de 2009 às 10:00
- Olá, bom dia minha querida.
Deixe-me abrir estas cortinas pesadas e mórbidas. Estão iguais a este quarto. A rua ainda está muito molhada, a calçada está repleta de poças. A noite de ontem foi chuvosa em muitos sentidos.
O sol está com uma expressão peculiar nesta manhã, parece querer exibir todo o seu esplendor, talvez queira tirar das nossas cabeças as pesadas nuvens da última tempestade. É interessante pensar que, de um jeito ou de outro, nós sabemos que o sol nascerá todas as manhãs. O dia pode estar nublado ou não, fato é que ele sempre estará lá – pensou Fabrício.
Passei no florista, comprei para você três dúzias das mais bonitas margaridas que fui capaz de encontrar, o vendedor disse que havia trazido da estufa esta manhã. Estas pessoas de olhos puxados sabem como cultivar flores. Espero que goste delas. Faz tempo que este quarto não via um pouco de cor, de vida. Acho que faz tempo que eu não vejo cores também. Não tem problema, as coisas acontecem como devem acontecer, e eu não tenho o poder para mudá-las, e se tivesse, provavelmente eu não teria o direito de direcionar os meus sentimentos no caminho de minhas vontades.
O sol está realmente bonito esta manhã, mas acho que no cair da noite as tempestades voltarão. E talvez o dia não amanheça como deveria no dia de amanhã – pensou ele.
Passou bem a noite, minha querida?
Eu cheguei completamente molhado em casa. Quando a chuva começou, eu estava na rua. Estou sempre esquecendo de levar o guarda-chuva, quando eu conseguir adquirir este hábito, provavelmente, transformarei o país em um deserto completamente seco. Então, por enquanto, acho que está muito bem do jeito que está.
Ontem cheguei em casa sem paciência para cozinhar, então botei uma pizza no microondas, daquelas que a gente compra no supermercado. Estava passando um filme que você gosta na TV, Hair. Nunca entendi seu gosto por este filme. Tão sem graça, tão fraco. A pizza era de quatro queijos.
Dormiu bem?
Eu nem sei por que ainda pergunto.
Eu estava passando pela Marcílio Dias, e na esquina com a Nações Unidas, encontrei uma pessoa. Adivinha quem era. O Thiago. Pois é, ele mesmo. Estava todo apressado, dizendo que precisava correr, se não, poderia se atrasar para o trabalho. Eu falei de você, ele ficou muito preocupado, acho que não entendeu muito bem a situação, ou talvez não quisesse entender. Eu ainda não consigo entender o afastamento de vocês. Pareciam combinar tanto. Bem, passado é passado.
Ele está tão bonito, nem parece aquele garoto louco, cujo único objetivo era tocar violão e assistir o pôr-do-sol na beira do Guaíba. Estava vestindo terno e gravata, cabelo bem cortado, barba feita. Os incríveis olhos azuis ainda são os mesmos, o brilho ainda transmite um certo ar de juventude domada.
Depois que voltou para o Brasil, passou a morar novamente com os pais, disse que não tem capacidade de morar sozinho. Talvez não tenha mesmo.
- Com licença. Bom dia.
- Bom dia enfermeira.
- O senhor chegou cedo hoje.
- Pois é, acho que acordei disposto.
- É bom para ela que, pelo menos, um dos amigos fique aqui na fase final.
- Para ela pode ser, mas para mim, está sendo uma completa tortura, vê-la neste estado...
- Não se preocupe, o sofrimento dela não se estenderá por muitos dias.
- Que remédio é este?
- A morfina, a dor deve ser insuportável.
- Não diga isso.
- Desculpe senhor, mas é que você disse que gostaria de saber todos os detalhes.
- Desculpe, ando muito nervoso nestes últimos dias.
- Eu entendo.
- Não, o pior é que você não pode entender.
- Sinto muito.
- Obrigado.
- Eu volto mais tarde para ver se está tudo sob controle. Se precisar, é só apertar aquele botão, eu virei o mais rápido que puder.
- Farei isso, se for preciso.
- Até mais tarde.
- Até, e muito obrigado.
- Não agradeça, este é o meu trabalho.
Os dois estavam novamente sozinhos no quarto.
- Bem, voltando ao nosso assunto. Ele me disse que entraria em contato, eu não acredito, mas ficarei esperando como um bobo. Talvez eu mereça estar sozinho, nunca consigo controlar os meus sentimentos quando estou com ele. Ele tem esse poder sobre mim. Se soubesse, provavelmente nossa amizade seria quebrada, e isso seria o fim para mim.
Posso colocar as flores neste vaso? Acho que vai ficar lindo se ficar perto da janela, as margaridas ficam sempre mais bonitas quando iluminadas pelo sol.
Você já reparou que, em um dia chuvoso, quando passamos por um jardim repleto de margaridas, a chuva parece não afetar aquele aspecto alegre, espalhafatoso, que elas possuem.
Eu não sei o porquê, mas sempre preferi as flores que não fossem do gosto popular. Enquanto todos gostavam das rosas, eu plantava hortênsias. Enquanto as pessoas importavam o tipo mais raro de orquídea, eu sempre roubava as margaridas do jardim de minha mãe.
Não sei por que, mas as hortênsias lembram-me aquelas senhoras, que sentam na praça e gastam o dia inteiro jogando milho para as pombas. Elas vestem aquelas saias desbotadas e suas mãos cheiram a alvejante, estão sempre com o rosto oleoso. São boas cozinheiras e adoram doces. Talvez elas possuam muitos motivos para voltar para casa, mas deixam estar. Preferem banhar-se com o sol da tarde. Muitas são viúvas, as que não são, provavelmente deixaram os maridos sentados na sala de casa, naquelas poltronas antigas, com flores estampadas. Talvez a sala esteja escura, talvez o marido fique com preguiça ou talvez não tenha mais força para levantar e ligar a TV. Talvez quando essa senhora chegar em casa, encontrará o marido enfartado, sentado na poltrona, exibindo um sorriso sereno, calmo.
Acho que é por isso que eu sempre gostei das hortênsias, elas lembram-me aquela típica figura das avós, que sempre estão com o nosso bolo preferido pronto. Parece que adivinham quando vamos visitar.
Você já reparou que nós nunca conseguimos ver as nossas avós como crianças? É estranho pensar que um dia elas já foram pequenas. Eu sempre tive a sensação de que a minha já havia nascido com 70 anos, com aquele cabelo branco, aquelas rugas. Sempre pensei que ela soubesse cozinhar desde sempre. Não sei, mas não consigo imaginar a minha avó fazendo xixi nas fraldas e chorando por uma mamadeira. Não consigo vê-la como uma adolescente rebelde, mandando meus bisavós à puta que pariu. Talvez seja por isso que eu goste tanto das espalhafatosas hortênsias, elas se parecem com a minha avó.
Ficaram perfeitas perto da janela, eu falei que ficariam, talvez elas consigam tirar este cheiro de morte desse quarto.
Essa melancolia no seu olhar é que me mata. Não sei mais o que dizer. Já pensei em não vir mais te ver, mas acho que eu não gostaria de não estar aqui quando a hora chegar. Eu não deveria estar falando essas coisas para você. Eu deveria estar lhe incentivando, falando sobre coisas alegres, sobre o mundo lá fora. Mas o mundo não é um lugar bonito, tão pouco feliz. Eu também não sou. Não sei por que achei que eu pudesse ser a pessoa certa para estar com você na fase final. Talvez eu achasse que teria força suficiente para segurar a sua mão, acho que não tenho, mas essa é uma percepção tardia.
Acho que vou ao cinema antes de ir para casa, preciso sair da realidade por algumas horas, as salas de cinema sempre me ajudam, são minha saída de emergência. Concordo que é preciso ter força, ser corajoso, e o pior é que eu não creio que essas qualidades são completamente aplicáveis a mim.
Talvez eu seja fraco, covarde. Talvez eu não quisesse estar aqui, talvez eu nem devesse estar aqui. Eu queria ouvir da sua boca que estou livre para ir e não voltar mais, eu queria que você pudesse dizer isso. Eu sairia pela porta e, com certeza, não voltaria mais. Tentaria esquecer de você, esquecer que existiu e que sentirei saudade.
Eu nem sei por que continuo falando com você como se quisesse ouvir a resposta. Talvez eu precise de alguém que diga a resposta que, há muito tempo, desejo ouvir.
Todos nós tentamos, de alguma forma, mudar o mundo. Talvez ficando aqui eu esteja fazendo a minha parte, talvez não. Eu sei que depois de tudo isso eu continuarei sendo a mesma pessoa, nem melhor nem pior. Apenas a mesma pessoa. Talvez eu fique um pouco mais triste, mas acho que será por pouco tempo. Somente até esquecer essas semanas no hospital, essas tempestades, dentro e fora de mim. Nem sei quantos raios já senti dentro do peito. Nem sei como ainda bate um coração sob as minhas costelas. Talvez eu tenha disparado na direção errada, talvez eu tenha errado o tiro.
Acho que tudo isso servirá como lição, como aprendizado. Acho que no mês que vem você não estará mais aqui. Quem sabe quanto tempo tudo isso vai durar? Esses podem ser os últimos momentos da sua vida. A última respiração, a última lágrima.
Eu queria poder ler sua mente, queria saber o que se passa dentro dos seus pensamentos, queria entender quais são, e para quê servem estes últimos sentimentos.
Talvez sejam aqueles que torturam a gente pela vida inteira, talvez eles se aglomerem nos últimos momentos, servem somente, e tão somente, para torturar a nossa lucidez. Talvez tudo vire uma gigantesca nuvem de tédio incompreensível, pode ser que você esteja louca.
Eu não estou comovido com a sua situação, realmente não estou. Acho que não estou em outro lugar, porque não tenho nada mais interessante para ser feito, talvez eu esteja onde realmente queira estar, eu não sei mais.
Faz algum tempo que eu decidi que me tornaria indiferente em relação às questões produzidas em uma cena mórbida. Acho que tentei construir um mundo paralelo, ou talvez seja transversal dentro de duas linhas retas, fato é que, construí esse mundo para abrigar a minha mente insana. Não quero que ela fique muito tempo vagando por entre as regras de um jogo que eu ainda não aprendi jogar. Talvez esse empreendimento não resolva nada, mas eu vou ter tentado.
Eu nem sei como entregar os pontos, eu destruí toda a minha capacidade de amar. Talvez eu enterre o entulho junto com você.
Expulsaram-me do jogo. Eu não tinha pedido para participar. Que situação contraditória, eles te obrigam a entrar no tabuleiro, e quando se cansam, jogam você no lixo. O estranho é que você não pede para entrar, e quando está aprendendo as regras, eles te eliminam. Você fica com uma cara de idiota, mas, mesmo assim, tem que baixar a cabeça e abandonar a partida. É possível entender algo desse tipo? Acho que devo afogar as minhas vontades. Os meus pesares, já enterrei. Devo admitir que aprendi muitas lições com eles, mas, hoje, não servem mais.
Os fantasmas ainda me atormentam, não adianta eu dar o melhor de mim, eles nunca me deixarão em paz. Durante a noite, eles atormentam o meu sono, nem sei como eu ainda consigo acordar disposto. Eu tenho que lutar todas as noites contra os cruéis espíritos que tentam puxar os meus pés.
Quando chegar a minha hora, farei o possível para juntar todos esses sentimentos em um caldeirão, eu cobrarei dos verdadeiros responsáveis tudo que está acontecendo, nem que para isso eu precise bater de porta em porta.
Não quero transformar a minha mente em uma gigantesca tragédia. Farei com que os meus verdadeiros carrascos paguem a minha conta. Conquistei muitas coisas, eu não sabia que teria que pagar por elas. Eu vejo os meus pensamentos como duas linhas paralelas que insistem em se cruzar. Adquirir controle sobre tudo que se passa em uma vida, pode ser uma teoria muito bonita, porém, é uma conquista que pesa durante a viagem. É aquela mala que demorou para ficar pronta, e no final, você percebe que a maioria das coisas que está carregando, não servirão para absolutamente nada. Na exata hora que você decidir abandoná-la, perceberá que é algo impossível. Os malditos fantasmas sussurrarão nos seus ouvidos que a responsabilidade é exclusivamente sua. É realmente impossível abandonar uma bagagem de tal importância. Você se acostuma, no final do caminho, depois de ter tentado passar adiante, você perceberá que se acostumou com o peso extra.
Bem, acho que já falei bobagens demais por hoje, meus devaneios foram longe.
Preciso ir embora, volto amanhã.
Durma bem, Jane.