Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

O que restou da escuridão - Capítulo 8 - Pedro e Bruno, 30 de Junho de 1995

terça-feira, 4 de agosto de 2009 às 10:00
Noite fria, espantosamente fria. Os cachorros magros uivavam para a majestosa lua, que carregava uma aura de desespero controlado por medicamentos. Nem mesmo a lua parecia estar em seu estado normal. Parecia que as coisas não acabariam bem, mas era impossível saber em que ponto da cidade aconteceria a tragédia que a lua esperava para assistir. Talvez algum travesti morresse enforcado pelas mãos do macho insatisfeito, talvez alguém pulasse do viaduto.
A lua, majestosamente preocupada, sabia que algo de errado havia. Noite fria, propícia para tragédias amorosas. A lua, displicentemente, cantarolava “Himne a L’amour”, parecia empenhar mais tristeza do que a própria Piaf.
A neblina cobria as ruas, definitivamente, o dia perfeito para uma tragédia. A lua cantava baixinho, mas não tão baixo que os amantes e apaixonados não pudessem ouvir. Era possível sentir a vibração da impecável afinação.
As coisas, dentro da noite, vão se encaixando, para que, no fim da escuridão, o dia naça em perfeita ordem.
É como uma sessão de quimioterapia. A dose entra pela veia e esquenta o corpo, arde a alma e aniquila os males. Talvez a morte não seja tão ruim. Talvez todos devessem passar por uma quimioterapia emocional.
Você sabe que tem grandes chances de se curar, mas só pensa no pior, pensa apenas na morte e no fim das coisas que construiu. Alguns de nós se entregam, desistem de forma ordinária. Como se não pudessem remar contra a maré. Como se a correnteza mais forte, fosse culpa de uma enchente de desesperadas lágrimas salgadas, que escorrem pela face nos dias mais solitários.
Busca-se segurança, alívio, amor em outra pessoa. Busca-se a felicidade no corpo do outro. Como se o cultivo de nossa alegria dependesse do adubo contido no corpo alheio, do corpo estranho, do corpo cancerígeno. Deposita-se confiança demais, fé demais. Todos os nossos objetivos são perseguidos na vida de outra pessoa. Tudo que queremos está no outro, para conseguir, devemos nos apaixonar. E quando isso acontecer, esteja preparado para a destruição do leque de sentimentos que você demorou anos para obter. Quando perceber que, depositar integralmente a sua felicidade em outra pessoa pode ser algo demasiado arriscado, poderá ser tarde demais.
Você sabe que tem o direito divino ao amor, mas a busca incessante torna-te frio, transforma-te em um caçador sedento por carne quente, viva. Cada mordida que se erra, tornasse um degrau na descida para o fundo. Esse poço pode ser interminável. Você conquista o direito de sofrer, de querer morrer e de poder morrer a hora que quiser. Mas você não aperta o gatilho, pelo fato de querer presentear-se com uma nova chance, uma segunda tentativa. Deseja dar-se o direito de, simplesmente, ser feliz. Então você decide guardar a arma na gaveta. Decide que ainda não é hora. Pensa em tentar reconquistar a alegria da eterna busca. Torna-se humano novamente.
Você sai para respirar, pensar na vida e percebe que ainda há muito para ser visto, muito para ser vivido, muito para ser absorvido. As coisas parecerão entrar nos trilhos. Por um momento você sentirá toda a alegria de volta. O coração vai bater mais rápido e o sorriso será incontrolável. Você está novamente aberto para o mundo e o mundo lhe receberá de braços abertos. Aos poucos a adrenalina vai voltando ao nível normal e a cidade ao redor vai se tornando menos atraente outra vez.
As mesmas pessoas com os mesmos olhos vazios, os mesmos cabelos ao vento, os mesmos passos apressados, o mesmo rumo de todos os dias, o mesmo objetivo errado, o mesmo pensamento vão. E de repente o salto da mulher elegante prende no vão da calçada, e todo o encanto escorre para o bueiro.
Não há alguém que seja completo, não há imagem perfeita, não há caminho certo e nem uma vida adequada. Pode-se dizer que nos servimos de doses homeopáticas de sonhos, de quimeras. Tentamos nos enganar todos os dias. Acho que todos nós preferiríamos acreditar no lado bom da vida, nas boas atitudes das pessoas. Talvez nós possuamos mais fé do que os outros mereçam, mas isso não faz de mim uma pessoa melhor. Eu ainda desejo acreditar que os olhos vazios possuem sentimentos desconhecidos, mas, se somente eu acreditar, não fará nenhuma diferença. Assim, de alguma forma, todos nós poderíamos encontrar sentido para todas as coisas e pessoas que nos cercam. A vida pode ser muito mais profunda, muito mais inadequada para os seres humanos. Não há momentos ruins no álbum de fotografias, não há momentos ruins na mesa de jantar, não há perguntas inadequadas no sofá da sala, não há respostas convenientes nos jornais e não há sentido no excesso de conhecimento.
Cada porta que se fecha dentro de nossas mentes é uma chance deixada de lado, é um caminho excluído ou uma estrada apagada.
Às vezes nos sentimos em um quarto escuro procurando por uma falha na construção, para que possamos, mais uma vez, ver a luz do sol, sentir a brisa do final da tarde. Algumas vezes procuramos uma fenda para admirar a vida alheia. Consegue-se boas histórias quando gastamos dias cuidando da vida dos outros. No final você percebe que está atrasado em relação à própria vida. Quando há atraso nos trabalhos pessoais, dificilmente consegue-se recuperar o tempo perdido, dificilmente consegue-se terminar as tarefas em tempo hábil.
A completa nudez de meus pensamentos colocou-me na frente de obstáculos emocionais quase intransponíveis. Foi difícil superar todas as questões que minha própria mente obrigou-me a responder. Naturalmente não pude escapar do meu interrogatório.
Tantas verdades foram postas na mesa. Tantos segredos foram revelados sem o menor pudor, sem a menor discussão. Todas as minhas lembranças foram dilaceradas na minha frente e eu não pude fazer nada para salva-las. O que eu tinha de melhor, todas as memórias que eu possuía de tempos felizes, foi tudo ridicularizado na minha frente.
Depois de tudo aquilo, precisei reunir forças, conquistei uma mente tranqüila, vazia, porem tranqüilas.
Assim consegui seguir em frente, consegui recuperar o meu auto-respeito. Com as minhas habilidades de volta eu poderia construir um novo caminho. Talvez eu precisasse cortar alguns galhos para que o sol pudesse entrar na minha vida novamente. Talvez eu plantasse algumas margaridas para que a caminhada não se tornasse tão solitária. Talvez eu conseguisse alguém para me acompanhar, acho que eu não deveria seguir sozinho. Mas quem me acompanharia em uma jornada incerta? Quem estaria disposto a arriscar a felicidade para ficar ao meu lado? Se eu achasse alguém para construir essa estrada comigo, provavelmente, eu teria pena de Florbela Espanca. Não leria mais suas tristes poesias. Não poderia mais acreditar que o amor pudesse abandonar seu amante. Eu seria eu, e não valeria à pena sentir ódio, não. Eu estaria feliz, estaria pleno. Mas nada pode ser mais cruel do que deixar de acreditar no nosso próprio amor. Quando deixei de acreditar que eu pudesse ser feliz eu tentei esquecer, tentei pensar que era apenas um engano. Quando percebi que não acreditava na minha própria felicidade as coisas ficaram mais difíceis, mais penosas. Os dias pareciam não ter mais fim e a eternidade parecia um piscar de olhos, tinha perdido o sentido.
Quando revisamos e passamos a limpo tudo que existe em nossas mentes, as coisas parecem que perdem o brilho, a vida. Nada parece ter o mesmo sentido e às vezes nos sentimos envergonhados por atitudes infantis que serviram como aprendizado, como degrau.
Depois de tudo isso, a arma na gaveta parece ter mais serventia, mais utilidade. Parece que as coisas terão um final feliz se a arma entrar na história. Mas o ato de apertar o gatilho não é tão fácil como se pensa. Uma decisão como essa pode pesar na eternidade. A conta pode ficar alta demais.
O desespero torna as coisas mais claras, mais óbvias. A falta de controle nos mostra saídas adequadas em momentos de aperto no peito.

A noite estava calma, as estrelas estavam todas lá, o céu estava limpo. A lua cheia iluminava de uma forma peculiar as ruas do centro de Novo Hamburgo.
Poucas pessoas andavam pelas ruas durante a madrugada. O que se via eram os travestis nas esquinas e mendigos bêbados que cantavam para a lua. A alta sociedade local jazia deitada em camas confortáveis em seus travesseiros de plumas.
Pedro estava na sacada da pousada, vestia apenas uma cueca branca e um sorriso amargurado nos lábios. Acabara de sofrer a pior traição de sua vida, jamais pensara passar por algo daquele tipo.
Agarrou-se na balaustrada. “Pulo ou não pulo? Segundo andar? Acho que não”.
A leve brisa da madrugada fazia com que as leves cortinas de seda se soltassem das pesadas cortinas de veludo negro.
Os lençóis ainda cheiravam a sexo, a romance. O abat-jour proporcionava uma iluminação romântica para o ambiente.
Era uma pousada de extremo bom gosto. Os móveis de carvalho refletiam a luz do quarto. Havia um lustre de cristal que pendia do teto. Realmente um quarto de muito bom gosto.
No criado mudo havia duas taças que foram usadas para beber um bordeaux de primeira categoria, realmente uma safra muito boa.

-Voltou por quê?
-Esqueci minhas chaves?
-Estão na cama.
-Eu não queria te deixar desse jeito.
-Tarde demais.
-Nós vivemos momentos muito bons, mas acabou. Eu conheci outra pessoa – Bruno estava decidido, era com Thiago que ele queria estar.
-Eu já sabia que não poderia esperar nada de você.
-Não fale assim. Muitos momentos bons da minha vida eu passei com você.
-Eu não queria que acabasse assim. Por favor, não me deixe – Pedro realmente não queria que seu romance acabasse daquele jeito.
-Pare com isso, eu já disse que acabou.
-Beba mais uma taça comigo?
-Não, não, eu preciso ir.

As cortinas pretas deixavam o ambiente sombrio, algo parecido com cenário de filme de terror ou suspense. O clima não estava bom.

-Se um dia me quiser, eu ainda vou estar esperando.
-Acho que isso não vai acontecer.

Bruno bateu a porta do quarto e foi embora. Pedro dirigiu-se para o criado mudo, enquanto ouvia os passos de seu amante descendo as escadas. Abriu a gaveta e pegou a arma. Disparou uma única vez contra a própria cabeça. Bruno ouviu o tiro e voltou correndo para o quarto.
O corpo de Pedro estava caído no tapete ao lado da cama. A arma ainda estava na mão. O sangue havia se espalhado pelo chão. Os lençóis brancos, agora, estavam manchados de vermelho. A garrafa de vinho estava vazia, um cigarro ainda queimava no cinzeiro.
Bruno pegou Pedro nos braços, sentiu uma forte dor no peito e pela sua face escorreram lágrimas doloridas, lágrimas de arrependimento.
Talvez ele pudesse manter a relação com Pedro, talvez Thiago pudesse entender. Mas agora é tarde demais, não há mais tempo para voltar atrás. O que está feito não pode ser revertido.
O corpo de Pedro ainda estava quente, um calor estranho, mas a morte já havia se espalhado pelo seu sangue e seu sangue já havia se espalhado pelo quarto.

-Por quê? Por quê? Você era tão jovem, tinha tanta coisa para viver, tantos amores para encontrar, tantas histórias para presenciar. Acho que você conseguiu o que queria, tornou-me o vilão da nossa história. Eu já deveria estar acostumado, afinal, tornei-me o vilão da vida de todos que conheço.

A polícia chegou arrombando a porta, os hóspedes da pousada ficaram assustados com a situação.
Ali acabava a história do menino pobre que procurava o amor, procurava ser amado. “Pedro era intenso demais e sua morte não poderia ser diferente”, foi a única coisa que Bruno falou para Thiago.