Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

É assim...

terça-feira, 29 de dezembro de 2009 às 10:00
Há muito tempo eu ouvi que o essencial era pouco
Era o pouco que precisávamos, o pouco de cada dia
E assim acreditei que as pessoa poderiam ser justas
A gente cresce e aprende algumas coisas...

Não há pessoa mais pobre que o mais pobre de espírito
Não há pessoa mais ignorante do que as que não querem ver
Não há argumento contra uma mente “concretada”
Não há salvação para os não justos

Hoje somos as cópias esquisitas de uma geração libertária
Somos os incompetentes expostos no mercado das carnes
Assim faço parte da safra estragada, podre... inacabada
Sou mais eu do que muita gente pode ser essa tal gente

Dance

terça-feira, 22 de dezembro de 2009 às 10:00
Vou dançar... ali na rua
Não importa se me virem
Se houver alguém, danço mais feliz
Danço por mim, danço por ti

Que fim deu aquela saia bonita?
Aquela que abria e parecia flor.
Onde foi parar a sua estrela?
Onde esconderam nossos sorrisos?

Então dance!
Dance que eles um dia voltam!
Recupero cada passo, cada marca...
Dance que tem gente olhando

Pomar

terça-feira, 15 de dezembro de 2009 às 10:00
Ouvi alguém chamar
Gritaram meu nome e fizeram-me olhar
As nuvens pesadas
Disseram: está garoando sobre a bergamoteira

As folhas verdes choravam
Chorava a árvore, lavava a terra
Chorava o céu, lavava a gente
Chorava a gente, lavava nada

Estão brotando as amoras
E s bergamotas vão caindo
O sol ilumina a amoreira
E está chovendo na bergamoteira

Petardo

terça-feira, 8 de dezembro de 2009 às 10:00
Tropeços, pedras, estilhaços
A arma realmente disparou
Em algum canto estão os pedaços
A memória passiva não dissipou

A voz ecoa no silêncio noturno
A mente esconde o cansaço
É necessário lembrar do medo noturno
Contudo, sempre há o fracasso

Limpe o canto do roda-pé
Sempre esquece o compromisso
A mão abastece com rapé
As trombetas não dizem isso

Mostre atitude

terça-feira, 1 de dezembro de 2009 às 10:00
Se eu deixar a toalha cair é porque estou afim
Se eu rir com o canto da boca, você está convidado
Quando eu piscar o olho é porque você me tem
Não despreza que eu posso não voltar

Se eu rir alto você está autorizado a me agarrar
Quero ver essa atitude toda dessa lábia safada
Mando mostrar serviço, você sabe que eu mando mesmo
Encara essa ou foge da briga? Diz, diz que eu fico

Não digo que rsisto, mas só mostro paixão quando necessário
Sabe que sou sacana e que gosto de fazer charme para provocar
Arranco essa roupa, deixo a toalha cair e começo...
Beijo de canto, grito baixinho, calo quando suspiro e a noite rola...

Superficial

terça-feira, 24 de novembro de 2009 às 10:00
Agarre-me sob um véu negro
Noite escura me escolheu para ser sua
Hoje tenho tempo para mais de uma
Mas não demore a me procurar

A gente pode fugir para a sua casa
Se for em silêncio pode ser aqui mesmo
Mas não esqueça que não estamos sós
Há mais gente ao lado

Com jeito podemos ir longe
Mas acaba tão rápido e você vai embora
Demora, demora, demora, demora...
Eu sento ao lado do telefone e espero

Tango

terça-feira, 17 de novembro de 2009 às 10:00
Coloco a rosa no cabelo
Agora sou mulher de vermelho
Saia apenas até o joelho
Vou para a pista decidida

Agora, quem me tira pra dançar?
Alguém sabe o tango de los hermanos?
Se tem homem nesse lugar, eu desafio
Sou a dama das mãos másculas

Atire-me e recupere-me
Mais rápido na próxima vez
Hoje sou eu quem manda
Hoje sou a mulher com a rosa na boca

Nuvem

terça-feira, 10 de novembro de 2009 às 10:00
Sou vapor de nuvem e qundo convém sou água que cai
Sou assim porque estou sempre perto do céu
Não quero mais perder isso, mesmo em vapor, serei sólido
Quero saber onde cair, onde pisar e quem me levantará

Verei o sol nascer em várias partes do meu mundo
Saberei quem eu sou quando a menor planta me beber
Serei vida dentro de outra vida e assim serei feliz
E assim posso ser flor azul, vermelha, amarela...

Cinza quando quero aparecer mais que o sol
Caio em raios e trovões quando muito vento sopra
Volto ao rio, ao mar, ao córrego, à poça de lama na calçada...
Sou volátil, volúvel... sou nuvem

Crepúsculo

terça-feira, 3 de novembro de 2009 às 10:00
Vá, sol... Vá para um outro dia em outro lugar
Eu espero aqui e dou um jeito de não chorar
Sei que não o verei novamente
Eles olham para mim e se perguntam se pulo mesmo

Vá, crepúsculo da minha vida, vá nascer em um outro lugar
Eu faço mais um amanhã do que sobrou desse hoje
Têm mais cacos espalhados na grama
Recolho e corro, pulo e começo um novo amanhã

Aqueles que me viram podem ter certeza de que farei
Vá, sol, descanse do dia de hoje e vá dormir
Não sei se pulo ou se espero aqui
Mas, de qualquer forma, não espere por mim

Como assim?

terça-feira, 27 de outubro de 2009 às 10:00
Levantou do túmulo e não sabia onde estava
Lágrimas derramava pelo rosto
Nem as buzinas ela realmente ouvia
Passava, assoviava e sorria

Estava ali, ali, mas ninguém realmente a via
Saiu do cemitério e deu uma volta na quadra
Cansada de caminhar, sentou e comeu um maracujá
Não me pergunte, eu também não entendi

Ela voltou devagar e devagar deitou-se
Olhou para os lados para ter certeza de sizinha estar
Satisfeita com o passeio e com a refeição
Deitou-se, fechou os olhos e repousou no seu caixão

Coisas de mim

terça-feira, 20 de outubro de 2009 às 10:00
Oi! Vim pra dizer "oi"
E agora que já disse
Sinto a obrigação de ir embora
Se não quiser é só pedir

Lembra daquele jardim?
Daquela flor de perfume ameno?
Daquela tarde onde estávamos sós?
Estávamos sós dentro de nós mesmos

Amo lembrar da gente
Se ainda quiser que eu fique...
Diga bem alto que eu fico!
Sendo assim... vou dando adeus...

Cinema

terça-feira, 13 de outubro de 2009 às 10:00
Finjo que sou fácil, mas não sou
Parece que mesmo assim não te atraio
Diga que fomos feitos para estarmos juntos
Diga, mesmo que mentira, só para eu acreditar

Ainda não estou comprometido, mas poderia estar
Faço só para provocar e se não me der segurança não vou
Sou seu até decidir ser de outra pessoa
Mas por enquanto acredito no que sinto, mesmo que isso doa

Não diga nada, apenas me dê um olhar e solte um sorriso
Corra na minha direção, faça uma cena de cinema
Quando começar a chover a gente se beija
Corremos... enquanto entram os créditos finais...

Agora fui

terça-feira, 6 de outubro de 2009 às 10:00
Existo naquela frase que não disse
Penso naquele fato que não aconteceu
Ouço como se alguém quisesse
Canto naquele tom que não é meu

Nesses fatos vou indo...
Conto as pedras amarelas e faço estrada
Faço festa e vou dançando
Lembrando que agora estou sozinho

Está tudo bem!
Se não quer, tem quem queira
Dou um passo e vou mais alem
Decidi que não ouço mais besteira

O que restou da escuridão - Capítulo 10 - 29 de Dezembro de 1999

terça-feira, 18 de agosto de 2009 às 10:00
As coisas estavam entrando nos eixos. Parecia que estávamos nos acostumando com os fatos que pareciam deliciar-se com a nossa falta de entendimento perante tal situação.
A chuva caiu muitas vezes nesses dois meses e o que havia para ser limpo, agora, está no seu estado mais claro de compreensão.
As coisas não poderiam estar mais parecidas com um final esperado. Não houve surpresa durante esses dois meses e provavelmente não haverá. Milagres não aconteceram. Ninguém esperou que ela abrisse a boca para dizer que estava bem. Ninguém teve vontade de vê-la bem outra vez. A voz da maioria é a voz de Deus. Não é assim que se fala quando não se tem nada mais a dizer sobre alguma coisa?
Dezembro nunca esteve tão frio como nesse ano e nunca estivemos tão quente no lado de dentro. Afunilaram-se as histórias, as memórias, as lembranças e as esperanças. Afunilaram-se e foram depositadas em uma mórbida caixa de madeira. Sim, Jane está morta. Não havia muito a ser feito, ela estava fadada a este fim. Tudo que podíamos fazer era amenizar a dor da carne, a do espírito é mais difícil.

Ela morreu hoje de manhã. Eu havia chegado há pouco tempo. Nem tive oportunidade de conversar ou despedir-me. Hoje ela decidiu que não queria mais ouvir a voz de ninguém e assim agiu. Partiu sem alarde. A última lágrima ainda estava lá. Talvez tenha chorado pelo fato de não poder mais viver. Talvez pensasse que tinha muita coisa para ver. Talvez tenha chorado de raiva. Eu jamais saberei, acho que ninguém saberá.
O enterro, dentro da medida do possível, foi algo muito bonito. Nem sei se posso falar isso de um enterro, mas foi algo realmente muito bonito. Todos cantaram Famous Blue Raincoat baixinho. Era a música preferida da Jane.
Estavam todos lá. Thiago estava chorando feito criança, ainda não sei se o choro era por causa da Jane ou pelo fato de o Bruno ter ido a Europa com um garotinho de 18 anos. Agora Thiago estava como a Jane um dia esteve. Jamais conseguirá superar o remorso de, por ventura, ter destruído a esperança que ela poderia ter depositado nele.
O único membro da família Folkstore que apareceu para o funeral estava sendo enterrado. Espero nunca ter que encontrar um Folkstore na minha frente.
Ela teve que aprender sozinha. Aprender o que? A sobreviver imersa em uma incontrolável tempestade de corrosivos sentimentos que, vulgarmente, chamamos de vida.
Acho que eu gostaria de tê-la conhecido melhor, talvez até quisesse fazer parte dela. Acho que foi por isso que fiquei aqui. Agora sou parte de Jane Folkstore, como o câncer que a matou.
Sentirei muita saudade. Vai doer muito quando amanhecer o dia e eu perceber que ela não está mais entre nós. Vai terminar de rasgar os pedaços restantes o fato de eu ter perdido a única pessoa que me ouvia.
A Jane era uma aparição no meio do povo das ruas. Às vezes ela parecia um personagem inventado pela minha imaginação. Como se eu quisesse fazer tudo pelas atitudes dela. Talvez eu queira me tornar um personagem.
Acho que, agora, sendo parte dela, eu tenha me tornado um pouco personagem, um pouco divino, um pouco Jane.
Jane parecia-me ser um palito de fósforo. Entende o que eu quero dizer? Quando você risca um palito de fósforo você não pode segurá-lo por muito tempo, ou você solta ou você apaga, se não, acaba por queimar os dedos. Jane era um palito de fósforo. Não sabíamos viver sem ela, não sabíamos soltá-la. Ela queimou nossos dedos e se apagou.
Dizer que ela era apenas uma mulher é o mesmo que dizer que o diamante é apenas uma pedra. E, no fundo, talvez seja.

O que restou da escuridão - Capítulo 9 - Ao que restou da escuridão, 16 de Outubro de 1999

terça-feira, 11 de agosto de 2009 às 10:00
Devo concordar com os que acharam estranhas as minhas atitudes em relação a minha família. Quero deixar as coisas claras para os que tinham algum interesse na minha felicidade. Então, devo, primeiramente, privar-me de sentimentalismos pelos quais ninguém daria um centavo se quer.
A minha relação com o meu pai começou a desgastar-se quando o Bruno me disse que ele traía a minha mãe. Não sou antiquada ou retrógrada, mas sinceridade é necessária em qualquer época e em qualquer estilo de vida. Eu não quis julgar, minha intenção não era essa.
Na noite do dia 26 de Junho de 1995 o Bruno me chamou para seguirmos o nosso pai, pois bem, ele entrou em um hotel de baixo nível na Rua Lindolfo Collor, e, para a minha surpresa, não tinha uma mulher por companhia. Quando ele chegou em casa a noite eu o chamei para uma conversa. Disse a ele o que eu havia visto e pedi explicações. Ele disse que eu estava louca e deu um tapa no meu rosto. Daquele dia em diante eu não consegui mais olhar para a cara dele. Provocava-me náuseas o modo com o qual ele se comportava na frente dos seus amigos e de minha mãe.
Eu jamais poderei perdoá-lo. Se os outros soubessem das aventuras sexuais com os travestis podres dessa cidade imunda, asseguro que a reputação de tão respeitável senhor jamais seria recuperada. O pior de tudo isso é que o Bruno já sabia de tudo há muito mais tempo do que eu. Nunca consegui entender o controle psicológico que o meu pai tinha sobre o Bruno, sempre foi apenas uma marionete do patriarca Folkstore. Não consigo engolir esse tipo de coisa. Nunca me considerei uma pessoa passiva perante os obstáculos que as personalidades alheias me impuseram, para mim sempre foi fácil ultrapassar esse tipo de coisa, ou pelo menos pensava que era.
Quando contei à minha mãe as aventuras amorosas de meu pai, de início ela me pareceu não querer acreditar. Disse que talvez eu tivesse enxergado errado, que talvez eu tivesse visto coisa demais e que eu não deveria estar falando aquilo. Naquele momento eu percebi que minha mãe sabia de tudo, porém, não queria que meu irmão e eu ficássemos sabendo. Enquanto estava tudo escondido, para ela, estava tudo bem. Ela não pôde suportar o fato de seus filhos estarem sabendo da maior vergonha da família.
Eu perguntei a ela há quanto tempo ela sabia daquela situação e ela respondeu que sabia de tudo desde o dia em que conhecera o meu pai. Fiquei completamente sem palavras. Os meus avós obrigaram meu pai a se casar o mais rápido possível porque sabiam da condição do filho. Minha mãe foi a escolhida para salvar a família da vergonha. Ela realmente pensou que pudesse curar o marido e, por mais que tentasse, tudo seria inútil. Não havia cura porque não havia doença. Com o passar dos anos minha mãe foi se tornando fria e o meu pai gastava todo o seu dinheiro com os seus amantes. Inventaram um vício em jogo para que ninguém soubesse onde o dinheiro ia parar. Bruno, quando percebeu a farsa, começou a ajudar a cobrir as lacunas deixadas pelo meu pai. Eu jamais poderia supor algo daquele tipo. Minha mãe estava com os nervos à flor da pele pelo fato de ter que me contar todas aquelas coisas. Mas as surpresas não parariam por aí.
Eu quis saber como o Bruno tomou conhecimento de tudo aquilo. Ela disse que o Bruno sofria do mesmo distúrbio e que um dia ele estava levando um rapazinho para um hotel e viu o pai entrando com um travesti. Disse que precisou contar toda a história, assim como estava fazendo para mim.
Disse-me que não queria que o filho tivesse que se casar por conveniência, queria que ele fosse feliz, mas meu pai não estava querendo isso. Disse-me também que eu precisava aceitar a situação e que eu não tentasse mudar as coisas. As coisas são como são. E terminou assim o seu discurso: “as coisas são como são”.
Depois de tudo aquilo eu percebi que com o meu pai não haveria volta, mas eu consegui ver de outra forma tudo o que havia acontecido com o Bruno e o Thiago. Eu jamais conseguiria mudar o Thiago, então que ele fosse feliz com quem quisesse ser.
Eu peço desculpas para o meu irmão e para o seu namorado por não ter conseguido entender antes, mas agora as coisas estão mais claras e eu estou em paz e quero partir dessa forma. Que vocês sejam felizes do jeito que são. Eu, provavelmente, não os procurarei para desculpar-me, acho que não tenho mais espaço, mas parto em paz em relação a vocês.
Fabrício, a única coisa que eu te peço é que cuide do meu bem mais precioso. Você foi o melhor amigo que alguém poderia ter e eu sou muito grata a isso. Viva em paz. Eu sentirei muita saudade.

Jane Folkstore.

O que restou da escuridão - Capítulo 8 - Pedro e Bruno, 30 de Junho de 1995

terça-feira, 4 de agosto de 2009 às 10:00
Noite fria, espantosamente fria. Os cachorros magros uivavam para a majestosa lua, que carregava uma aura de desespero controlado por medicamentos. Nem mesmo a lua parecia estar em seu estado normal. Parecia que as coisas não acabariam bem, mas era impossível saber em que ponto da cidade aconteceria a tragédia que a lua esperava para assistir. Talvez algum travesti morresse enforcado pelas mãos do macho insatisfeito, talvez alguém pulasse do viaduto.
A lua, majestosamente preocupada, sabia que algo de errado havia. Noite fria, propícia para tragédias amorosas. A lua, displicentemente, cantarolava “Himne a L’amour”, parecia empenhar mais tristeza do que a própria Piaf.
A neblina cobria as ruas, definitivamente, o dia perfeito para uma tragédia. A lua cantava baixinho, mas não tão baixo que os amantes e apaixonados não pudessem ouvir. Era possível sentir a vibração da impecável afinação.
As coisas, dentro da noite, vão se encaixando, para que, no fim da escuridão, o dia naça em perfeita ordem.
É como uma sessão de quimioterapia. A dose entra pela veia e esquenta o corpo, arde a alma e aniquila os males. Talvez a morte não seja tão ruim. Talvez todos devessem passar por uma quimioterapia emocional.
Você sabe que tem grandes chances de se curar, mas só pensa no pior, pensa apenas na morte e no fim das coisas que construiu. Alguns de nós se entregam, desistem de forma ordinária. Como se não pudessem remar contra a maré. Como se a correnteza mais forte, fosse culpa de uma enchente de desesperadas lágrimas salgadas, que escorrem pela face nos dias mais solitários.
Busca-se segurança, alívio, amor em outra pessoa. Busca-se a felicidade no corpo do outro. Como se o cultivo de nossa alegria dependesse do adubo contido no corpo alheio, do corpo estranho, do corpo cancerígeno. Deposita-se confiança demais, fé demais. Todos os nossos objetivos são perseguidos na vida de outra pessoa. Tudo que queremos está no outro, para conseguir, devemos nos apaixonar. E quando isso acontecer, esteja preparado para a destruição do leque de sentimentos que você demorou anos para obter. Quando perceber que, depositar integralmente a sua felicidade em outra pessoa pode ser algo demasiado arriscado, poderá ser tarde demais.
Você sabe que tem o direito divino ao amor, mas a busca incessante torna-te frio, transforma-te em um caçador sedento por carne quente, viva. Cada mordida que se erra, tornasse um degrau na descida para o fundo. Esse poço pode ser interminável. Você conquista o direito de sofrer, de querer morrer e de poder morrer a hora que quiser. Mas você não aperta o gatilho, pelo fato de querer presentear-se com uma nova chance, uma segunda tentativa. Deseja dar-se o direito de, simplesmente, ser feliz. Então você decide guardar a arma na gaveta. Decide que ainda não é hora. Pensa em tentar reconquistar a alegria da eterna busca. Torna-se humano novamente.
Você sai para respirar, pensar na vida e percebe que ainda há muito para ser visto, muito para ser vivido, muito para ser absorvido. As coisas parecerão entrar nos trilhos. Por um momento você sentirá toda a alegria de volta. O coração vai bater mais rápido e o sorriso será incontrolável. Você está novamente aberto para o mundo e o mundo lhe receberá de braços abertos. Aos poucos a adrenalina vai voltando ao nível normal e a cidade ao redor vai se tornando menos atraente outra vez.
As mesmas pessoas com os mesmos olhos vazios, os mesmos cabelos ao vento, os mesmos passos apressados, o mesmo rumo de todos os dias, o mesmo objetivo errado, o mesmo pensamento vão. E de repente o salto da mulher elegante prende no vão da calçada, e todo o encanto escorre para o bueiro.
Não há alguém que seja completo, não há imagem perfeita, não há caminho certo e nem uma vida adequada. Pode-se dizer que nos servimos de doses homeopáticas de sonhos, de quimeras. Tentamos nos enganar todos os dias. Acho que todos nós preferiríamos acreditar no lado bom da vida, nas boas atitudes das pessoas. Talvez nós possuamos mais fé do que os outros mereçam, mas isso não faz de mim uma pessoa melhor. Eu ainda desejo acreditar que os olhos vazios possuem sentimentos desconhecidos, mas, se somente eu acreditar, não fará nenhuma diferença. Assim, de alguma forma, todos nós poderíamos encontrar sentido para todas as coisas e pessoas que nos cercam. A vida pode ser muito mais profunda, muito mais inadequada para os seres humanos. Não há momentos ruins no álbum de fotografias, não há momentos ruins na mesa de jantar, não há perguntas inadequadas no sofá da sala, não há respostas convenientes nos jornais e não há sentido no excesso de conhecimento.
Cada porta que se fecha dentro de nossas mentes é uma chance deixada de lado, é um caminho excluído ou uma estrada apagada.
Às vezes nos sentimos em um quarto escuro procurando por uma falha na construção, para que possamos, mais uma vez, ver a luz do sol, sentir a brisa do final da tarde. Algumas vezes procuramos uma fenda para admirar a vida alheia. Consegue-se boas histórias quando gastamos dias cuidando da vida dos outros. No final você percebe que está atrasado em relação à própria vida. Quando há atraso nos trabalhos pessoais, dificilmente consegue-se recuperar o tempo perdido, dificilmente consegue-se terminar as tarefas em tempo hábil.
A completa nudez de meus pensamentos colocou-me na frente de obstáculos emocionais quase intransponíveis. Foi difícil superar todas as questões que minha própria mente obrigou-me a responder. Naturalmente não pude escapar do meu interrogatório.
Tantas verdades foram postas na mesa. Tantos segredos foram revelados sem o menor pudor, sem a menor discussão. Todas as minhas lembranças foram dilaceradas na minha frente e eu não pude fazer nada para salva-las. O que eu tinha de melhor, todas as memórias que eu possuía de tempos felizes, foi tudo ridicularizado na minha frente.
Depois de tudo aquilo, precisei reunir forças, conquistei uma mente tranqüila, vazia, porem tranqüilas.
Assim consegui seguir em frente, consegui recuperar o meu auto-respeito. Com as minhas habilidades de volta eu poderia construir um novo caminho. Talvez eu precisasse cortar alguns galhos para que o sol pudesse entrar na minha vida novamente. Talvez eu plantasse algumas margaridas para que a caminhada não se tornasse tão solitária. Talvez eu conseguisse alguém para me acompanhar, acho que eu não deveria seguir sozinho. Mas quem me acompanharia em uma jornada incerta? Quem estaria disposto a arriscar a felicidade para ficar ao meu lado? Se eu achasse alguém para construir essa estrada comigo, provavelmente, eu teria pena de Florbela Espanca. Não leria mais suas tristes poesias. Não poderia mais acreditar que o amor pudesse abandonar seu amante. Eu seria eu, e não valeria à pena sentir ódio, não. Eu estaria feliz, estaria pleno. Mas nada pode ser mais cruel do que deixar de acreditar no nosso próprio amor. Quando deixei de acreditar que eu pudesse ser feliz eu tentei esquecer, tentei pensar que era apenas um engano. Quando percebi que não acreditava na minha própria felicidade as coisas ficaram mais difíceis, mais penosas. Os dias pareciam não ter mais fim e a eternidade parecia um piscar de olhos, tinha perdido o sentido.
Quando revisamos e passamos a limpo tudo que existe em nossas mentes, as coisas parecem que perdem o brilho, a vida. Nada parece ter o mesmo sentido e às vezes nos sentimos envergonhados por atitudes infantis que serviram como aprendizado, como degrau.
Depois de tudo isso, a arma na gaveta parece ter mais serventia, mais utilidade. Parece que as coisas terão um final feliz se a arma entrar na história. Mas o ato de apertar o gatilho não é tão fácil como se pensa. Uma decisão como essa pode pesar na eternidade. A conta pode ficar alta demais.
O desespero torna as coisas mais claras, mais óbvias. A falta de controle nos mostra saídas adequadas em momentos de aperto no peito.

A noite estava calma, as estrelas estavam todas lá, o céu estava limpo. A lua cheia iluminava de uma forma peculiar as ruas do centro de Novo Hamburgo.
Poucas pessoas andavam pelas ruas durante a madrugada. O que se via eram os travestis nas esquinas e mendigos bêbados que cantavam para a lua. A alta sociedade local jazia deitada em camas confortáveis em seus travesseiros de plumas.
Pedro estava na sacada da pousada, vestia apenas uma cueca branca e um sorriso amargurado nos lábios. Acabara de sofrer a pior traição de sua vida, jamais pensara passar por algo daquele tipo.
Agarrou-se na balaustrada. “Pulo ou não pulo? Segundo andar? Acho que não”.
A leve brisa da madrugada fazia com que as leves cortinas de seda se soltassem das pesadas cortinas de veludo negro.
Os lençóis ainda cheiravam a sexo, a romance. O abat-jour proporcionava uma iluminação romântica para o ambiente.
Era uma pousada de extremo bom gosto. Os móveis de carvalho refletiam a luz do quarto. Havia um lustre de cristal que pendia do teto. Realmente um quarto de muito bom gosto.
No criado mudo havia duas taças que foram usadas para beber um bordeaux de primeira categoria, realmente uma safra muito boa.

-Voltou por quê?
-Esqueci minhas chaves?
-Estão na cama.
-Eu não queria te deixar desse jeito.
-Tarde demais.
-Nós vivemos momentos muito bons, mas acabou. Eu conheci outra pessoa – Bruno estava decidido, era com Thiago que ele queria estar.
-Eu já sabia que não poderia esperar nada de você.
-Não fale assim. Muitos momentos bons da minha vida eu passei com você.
-Eu não queria que acabasse assim. Por favor, não me deixe – Pedro realmente não queria que seu romance acabasse daquele jeito.
-Pare com isso, eu já disse que acabou.
-Beba mais uma taça comigo?
-Não, não, eu preciso ir.

As cortinas pretas deixavam o ambiente sombrio, algo parecido com cenário de filme de terror ou suspense. O clima não estava bom.

-Se um dia me quiser, eu ainda vou estar esperando.
-Acho que isso não vai acontecer.

Bruno bateu a porta do quarto e foi embora. Pedro dirigiu-se para o criado mudo, enquanto ouvia os passos de seu amante descendo as escadas. Abriu a gaveta e pegou a arma. Disparou uma única vez contra a própria cabeça. Bruno ouviu o tiro e voltou correndo para o quarto.
O corpo de Pedro estava caído no tapete ao lado da cama. A arma ainda estava na mão. O sangue havia se espalhado pelo chão. Os lençóis brancos, agora, estavam manchados de vermelho. A garrafa de vinho estava vazia, um cigarro ainda queimava no cinzeiro.
Bruno pegou Pedro nos braços, sentiu uma forte dor no peito e pela sua face escorreram lágrimas doloridas, lágrimas de arrependimento.
Talvez ele pudesse manter a relação com Pedro, talvez Thiago pudesse entender. Mas agora é tarde demais, não há mais tempo para voltar atrás. O que está feito não pode ser revertido.
O corpo de Pedro ainda estava quente, um calor estranho, mas a morte já havia se espalhado pelo seu sangue e seu sangue já havia se espalhado pelo quarto.

-Por quê? Por quê? Você era tão jovem, tinha tanta coisa para viver, tantos amores para encontrar, tantas histórias para presenciar. Acho que você conseguiu o que queria, tornou-me o vilão da nossa história. Eu já deveria estar acostumado, afinal, tornei-me o vilão da vida de todos que conheço.

A polícia chegou arrombando a porta, os hóspedes da pousada ficaram assustados com a situação.
Ali acabava a história do menino pobre que procurava o amor, procurava ser amado. “Pedro era intenso demais e sua morte não poderia ser diferente”, foi a única coisa que Bruno falou para Thiago.

O que restou da escuridão - Capítulo 7 - Jane e a mãe de Pedro, 21 de Junho de 1995

terça-feira, 28 de julho de 2009 às 10:00
- Eu poderia falar com a professora Jane?
- Sim, ela está na sala 808, é neste mesmo corredor.
- Obrigada!
Ela andou pelo corredor, olhando para os números nas portas. Estava com uma expressão de preocupação; não sabia do que se tratava, apenas fora chamada na escola onde seu filho mais velho estudava. Estava torcendo para que fosse apenas uma reunião de pais e mestres; poderia ser, mas, mesmo assim, estava preocupada.
- Boa tarde! A senhora é a professora Jane?
- Sim, sou eu. A senhora deve ser a mãe do Pedro.
- Sim, sim senhora.
- Sente-se e vamos conversar.
- É muito grave?
- Não, é apenas uma preocupação minha.
- Melhor assim.
- Bem, como professora, não pude deixar de notar que, o Pedro, está muito distante. Ele era um bom aluno, e tenho certeza que continua sendo, mas, ultimamente, anda alheio aos estudos, não acompanha minhas aulas; percebo também, que anda preocupado com algo que não quer dizer. Veja bem, não estou querendo meter-me na sua vida nem na de seu filho, mas como professora, procuro construir futuros pensadores, e, com isso, devo sim, preocupar-me com as atitudes daqueles pelos quais tenho verdadeira estima. Então, chamei a senhora aqui, para saber se o Pedro está tendo problemas em casa. Está acontecendo algo errado, alguma coisa diferente, algo que possa ter causado alteração de humor, de vontade?
- Eu não sei qual é o motivo e a senhora não tem tempo para me ajudar, deve estar atarefada com o seu trabalho.
- Não, não, muito pelo contrário, este é o meu trabalho. Devo ajudar os jovens, entender o que acontece e tentar encontrar soluções para os seus problemas, portanto, tenho muito tempo para te ouvir, afinal, foi para isso que lhe chamei aqui.
- Então está certo.
A minha vida nunca foi fácil. Tenho seis filhos com cinco homens diferentes; eu não quis assim; a vida quis. Eu sou pobre, não tive estudo. Aprendi levando tapa na cara, e não é eufemismo, aprendi assim mesmo. Eu vim de uma cidade muito pequena do Nordeste; viajei durante dias para chegar ao sul. Ouvia-se que aqui era a terra das oportunidades, dos empregos; devo ter ouvido errado, agora é tarde demais. Passei oito dias dentro de um ônibus, o que eu tinha? Esperança. Trazia comigo apenas sonhos, vontades e todas as quimeras que uma moça pobre pode ter. Tinha esperança e nenhum dinheiro no bolso. Chegando aqui eu arrumaria um emprego de carteira assinada, assim, reconstruiria a minha vida, aos poucos. Vivi este sonho durante uma semana, nesses sete dias eu não tive o que comer e nem onde dormir, até então eu estava sozinha, e estando sozinha eu me virava. Engravidei do primeiro “príncipe encantado”, o pai do Pedro; quando ele soube foi embora, me largou na rua, sozinha, com sede, com fome e grávida. Tive que fazer a minha primeira escolha: Ter ou não o meu filho. Pois bem, o tive, não me arrependo, e a vida ficou um pouco mais difícil, não tinha problema, eu ainda possuía meus braços e minhas pernas e, com isso, eu poderia trabalhar e educar meu filho. O meu alarme de desespero era o choro do Pedro, não tive leite e não estava conseguindo dinheiro para comprar. Quando eu pedia ajuda pelos bares e restaurantes, a única coisa que eu ouvia era um seco e agressivo “não”. Eu poderia ter desistido, entregado meu filho para adoção, até pensei em saltar de um viaduto com ele nos braços. Decidi que se eu quisesse me matar eu poderia, mas eu não tinha o direito de fazer isso com o Pedro; tão pequeno, tão frágil, com uma vida inteira pela frente, eu realmente não tinha esse direito; desisti, desisti de mim, mas eu ainda precisava criar meu filho, os dias não foram fáceis como pensei que seriam, tudo bem, meus braços e pernas ainda estavam comigo.
Eu precisava acreditar que eu era forte, que eu era capaz, e só por isso que ainda estou aqui. Não soube administrar minha vida, e acabei por interferir na vida dos meus filhos; tento mantê-los fora de tudo isso, acho que eles não precisam ficar sabendo e, talvez por isso, acabo por magoá-los cada vez mais.
- E os seus pais, os avós do Pedro? Como ficam eles nessa história toda?
- Como eu já havia dito para a senhora, eu sou de uma pequena cidade do Nordeste. Eles não sabem e talvez nem quisessem saber, e se quisessem, não poderiam, estamos muito longe.
Desde pequena a minha vontade era estudar e conseguir um emprego melhor do que aquele que meus pais tinham. Vontade normal, simples, mas não para os meus pais; para eles isso era coisa de comunista, coisa do demônio, não os culpo, crescendo naquele fim de mundo, o importante é ter feijão e arroz na mesa e saúde para trabalhar na roça. Saúde eu tinha, mas não tinha vontade, não queria acabar como eles, com o rosto rachado pelo sol. Eu sofri muito saindo de casa e, hoje, penso que, talvez as rachaduras provocadas pelo sol, não eram tão ruins assim. Eu teria rugas, mas, por outro lado, teria paz, para mim e para os meus filhos; talvez o sol não fosse tão cruel como eu pensava, tarde demais. É necessário fazer escolhas, eu escolhi, acabei por deixar uma vida pacata para trás, hoje, tudo que eu queria era a casa dos meus pais, não há lugar no mundo que possa ser comparado ao nosso verdadeiro lar. A casa era simples, chão batido, paredes de barro e telhado de palha, mas aquele era o meu lar, de uma forma ou de outra eu sabia que aquilo também era meu, era pouco, mas, hoje, poderia me bastar. Como eu disse antes, tarde demais. Eu escolhi e deixei para trás, tudo bem, meus braços e pernas ainda estão aqui. Eu ainda tenho o poder de escolher e de mudar o que está errado na minha vida.
Passei por momentos ruins, momentos que eu não desejaria para ninguém. Alguém se importou? Não, somente eu, quando precisei de caridade não tive, mas não me tornei amargurada. Tento fazer as coisas por mim e pelos meus filhos, se alguém me pedir ajuda não negarei, não pretendo fazer para os outros o que fizeram para mim, sou assim. Sou um ser errante, como todos os outros. Aprendi com a vida a ser tolerante e paciente. Precisei ser muito tolerante para estar aqui hoje. Não posso reclamar, tenho seis filhos que são meus anjos, minha razão de viver e, é por eles, que ainda me sujeito aos desprazeres dessa vida.
Deus esqueceu de mim. Várias noites eu rezei pedindo ajuda, o silêncio foi a resposta mais concreta que recebi. Talvez Ele queira isso para mim, talvez eu tenha que aprender, apenas acho que Ele escolheu, para mim, o pior jeito de aprender as coisas, tudo bem, Ele sabe o que faz; talvez eu tenha que ser ainda mais tolerante, difícil, mas possível.
Onze meses depois do primeiro “príncipe encantado”, veio o segundo. Eu resolvi dar uma chance para mim mesma, resolvi me apaixonar. Eu realmente desejava ser amada, eu precisava daquilo, eu precisava me sentir desejada.
O segundo “príncipe encantado” é o pai do meu segundo filho. Fiquei dois meses com ele, foi o suficiente para aumentar a tragédia da minha vida; não me entenda errado, filhos são uma dádiva, mas não naquele momento, eu não estava preparada, eu não tinha casa e nem emprego. Você acha que algum dos “príncipes encantados” ligou? Você acha que algum deles, pelo menos um, perguntou como eu estava, se eu estava precisando de alguma coisa ou se os filhos estavam bem? Não, sinto informar, nenhum quis saber como a situação estava, particularidade masculina. Talvez seja por isso que são as mulheres que gestam os filhos, e não os homens, talvez Deus saiba que somos nós que vamos cuidar, criar e alimentar. Talvez Ele conheça bem a criação Dele e, por isso, é que os homens entram com dois minutos de prazer. Eles têm o prazer físico, banal, etéreo, volátil, nós, mulheres, ficamos nove meses gerando alguém que irá nos amar incondicionalmente, esse é o meu consolo, eu preciso dele.
Passei um ano de casa em casa, quando não conseguia pagar o aluguel, era jogada na rua, na calçada, na sarjeta. Depois desse ano, o segundo “príncipe” apareceu novamente. Pediu desculpas, disse que estaria comigo e que gostaria de dar uma boa educação para o filho. No início eu tentei resistir, mas pensei que seria a chance de dar um pai para os meus filhos, eles precisavam de uma figura masculina, alguém para seguir o exemplo. Estava tudo perfeito, tudo estava exatamente como eu imaginei, mas durou pouco, na verdade, durou muito pouco.
Ele começou a chegar tarde todos os dias, e se eu perguntasse, com certeza, no dia seguinte, eu estaria com o olho roxo. Sim, ele batia em mim. Algumas vezes batia tão forte que eu perdia os sentidos, achava que iria morrer, sangrava muito. Quando acordava meus filhos estavam chorando, com fome, com frio. Mais uma vez um “príncipe encantado” tornou-se o vilão da história da minha vida. Talvez eu não tenha sorte no amor. Fato é que, depois de dois meses, ele foi embora, não sem antes me deixar com mais um filho. Agora eram três crianças para alimentar e educar. Eu poderia Ter jogado tudo para o alto, desistido de tudo, mas sou nordestina, o meu povo tem esperança, força de vontade. Durante os meses de seca, de fome, de miséria, o que nos mantém vivos é a esperança e a fé de que, cedo ou tarde, Deus mandará chuva para ressuscitar a terra e fazer crescer o feijão. Com essa fé intrínseca, herança do meu povo, eu não desisti. Eu precisava encontrar um jeito de manter os meus filhos vivos. E, partindo desse ponto, a história toma outro rumo.
Resolvi “cair na vida”, virei “mulher de vida fácil”. Não é assim que se diz? “Mulher de vida fácil”? Não foi assim que a sociedade me nomeou? Desde pequena eu não sei o que é vida fácil, e não seria me prostituindo que eu iria descobrir o que é.
Demorei uma semana para resolver ir para a rua, eu não queria perder a dignidade, mas quando o meu bebê começou a chorar por causa da fome, percebi que a minha dignidade não encheria a barriga de ninguém, então, fui à rua.
Foi um dos piores dias da minha vida, abrir a porta da minha casa foi uma tarefa demasiado dolorosa, ao pisar na calçada, percebi que deveria deixar os meus sentimentos em casa, foi o que fiz. Eu lembro de cada segundo daquela noite, cada bêbado, cada esquina, cada bar.
Fazer sexo não é difícil, para isso basta abrir as pernas. Difícil é oferecer-se para um homem que você nunca viu na vida, mas a gente se acostuma, a necessidade fala mais alto e a barriga dos meus filhos também.
Aos poucos fui ficando fria. Fingia prazer para não perder o cliente, às vezes era necessário fingir para não apanhar; os homens precisam sentir-se como garanhões, nojento, eu sei. Essas cicatrizes nos meus braços são queimaduras de cigarro, tem gente má nesse mundo. A única coisa que não podia acontecer, quando eles começavam a bater em mim, era cair no chão, e se isso acontecesse, eu, provavelmente, acordaria em um hospital, com uma perna e quatro costelas quebradas, como já aconteceu.
Levei muito tapa na cara e muito puxão de cabelo para aprender a chupar, acho que aprendi, quanto a isso, não ouço mais reclamações. Se eu já fui estuprada? Muitas vezes. Se a polícia fez alguma coisa? Minha querida, quando se é prostituta, vagabunda, “mulher de vida fácil”, como dizem, a gente não tem direitos, somos apenas mercadorias com defeito e, por isso, precisamos nos sujeitar a todo tipo de covardia. Uma vez eu fui fazer uma denuncia, o policial disse que estupro é uma mulher que desiste na hora “H”, depois disso resolvi agüentar.
Nunca vou esquecer a primeira curra, pensei que teria as entranhas arrancadas de dentro de mim, foram dois de uma só vez, naturalmente, a primeira foi na base da força, na verdade eu não queria, eles me obrigaram.
Não sei quem são os pais dos meus três últimos filhos, a vida se encarregou de escondê-los bem. São filhos da vida, da noite, da profissão.
Tinha dias que eu nem conseguia sair da cama de tão cansativa que tinha sido a noite anterior. O máximo de homens que eu já consegui atender em uma noite foram treze, noite difícil aquela, mas não houve reclamação.
A vida nas ruas é difícil, temos que brigar com as outras meninas, às vezes é necessário disputar com o braço o melhor lugar na calçada, o melhor cliente.
É muito cruel a vida de uma prostituta, a senhora não deve saber o que é passar fome, apanhar de namorado bêbado e ser queimada por cliente agressivo. A senhora tem rosto de princesa, deve ter nascido em uma boa família, teve oportunidades de estudo, de empregos. Deve ser muito bom ter uma vida assim.
- Devo dizer que muitas vezes reclamei da vida que eu tinha, mas agora sei o quão abençoada fui. Jamais poderia imaginar que tantas desventuras fossem capazes de acontecer com a mesma pessoa.
Não vou fingir que não entendo o que está acontecendo com o Pedro, não. Mas mesmo assim desejo ajudá-lo a melhorar, quero que ele tenha as oportunidades que a senhora não teve. Penso que dessa forma, talvez, eu esteja trazendo um pouco de alegria para a sua história, talvez eu possa ajudar a escrever um final feliz para a sua vida, talvez.
- Eu fico muito agradecida pelo que a senhora está fazendo pelo meu filho, espero que, de alguma forma, eu consiga, um dia, retribuir tudo isso.
- Não será necessário. Como o Pedro costuma ocupar os seus dias?
- Para dizer a verdade, eu chego muito cansada em casa, quase não tenho tempo para conversar com meus filhos. Sei que o Pedro nunca foi um menino normal, sempre gostou muito de ler, preferia passar as tardes lendo do que jogando futebol, às vezes, passa a tarde inteira no topo de um ipê que tem na beira do rio que passa em frente a minha casa. Certa vez perguntei o que fazia naquela árvore. Disse que, depois que os meninos terminavam de jogar bola, lavavam a as mãos no rio, bem ao lado de uma saída de esgoto. Disse que gostava de ver como as ratazanas e os meninos dividiam o mesmo espaço, achava poético; a podridão e a racionalidade curvando-se para a natureza – palavras dele.
Eu sinto muito orgulho do meu filho. Espero que ele termine os estudos e siga uma boa profissão, uma que dê futuro para ele, acho que essa é minha última vontade, minha última alegria, minha última esperança.

O que restou da escuridão - Capítulo 6 - Thiago e Bruno, 26 de Junho de 1995

terça-feira, 21 de julho de 2009 às 10:00
- Você sabe que se vier comigo tudo poderá ser diferente, tudo será diferente.
- Eu estou muito cansado de toda essa situação, não consigo mais pensar. Estou me sentindo sufocado, com vontade de gritar, de chorar.
- Você pode não acreditar, mas eu sei como se sente, já passei por isso. Foi difícil no começo, mas depois passa. Tudo acaba passando.
- Pois é, eu sabia que não seria fácil, mas, mesmo assim, decidi ir em frente. Eu jamais poderia imaginar que as coisas tomariam esse rumo, jamais. Quando chegamos a esse ponto, temos a sensação de que tudo parece ter dado errado, no inicio parecia ter sentido, agora, não sei mais se tem. Não havia sentido algum em tudo aquilo. Eu não queria ter sido o causador dos tormentos de sua irmã, não queria.
- Tudo é passado agora. Ela teve que aprender a conviver com a situação, teve que aprender a administrar os próprios sentimentos. Quem saiu perdendo nessa história fui eu, eu fui o único perdedor. Não vou dizer que me arrependo, não, mas, de alguma forma, as coisas poderiam ter tomado rumos diferentes. Eu não planejei todas essas desventuras e não alimentei as quimeras de ninguém, mas eu queria ter protegido ela de tudo isso. Sempre tentei ser uma pessoa boa e, no final da história, acabei me tornando o vilão da minha própria família.
- Eu sei que o seu pai jamais aceitará a nossa situação, contudo, eu gostaria de poder construir uma vida com você, eu gostaria de poder sair na rua e segurar a sua mão, queria poder não sentir medo dos outros, gostaria de ter paz, de ter alívio, gostaria de estar alheio.
- Não podemos desistir agora.
- Eu sei.
- Lutamos tanto por isso, rompemos com nossos amigos, traímos as nossas famílias, agora, tudo isso, não pode ser deixado de lado.
- Eu sei, eu sei, mas isso tudo é tão cruel, estamos construindo a nossa felicidade em cima da tragédia sentimental dos outros, isso não parece justo, não parece.
- Não parece e não é, entretanto, tivemos que lutar, fizemos uso das armas que nos pertenciam, e, em uma guerra, sempre tem alguém que perde, alguém que morre.
- É disso que eu estou falando. Não te parece injusto que, para que duas pessoas possam ser felizes, outras tantas precisem sofrer? Como eu vou poder estar plenamente feliz com isso? Quando eu vou me sentir bem? Será possível esquecer isso tudo que passou? Entende? Eu não sei se posso ser completamente feliz, sabendo que quem eu tanto quis bem, hoje, sofre. E a Jane não teve a chance de ter uma boa explicação, uma satisfação cabível.
- Eu te entendo, mas não partilho dos mesmos pensamentos, como eu disse, isso é um certo tipo de guerra.
- Você diz que é uma guerra, mas quando ela foi avisada que o combate começaria? Quando você permitiu que ela tivesse tempo para escolher as suas armas? É isso que eu quero dizer, não foi justo, sob nenhum aspecto. Ela nem sabia que precisaria se defender.
- Eu entendo as suas preocupações.
- Não, acho que não entende.
- Sim, entendo.
- Não, não falando desse jeito.
- Veja bem, eu não quero começar uma discussão com você, eu realmente não quero. Posso te ouvir e tentar te aconselhar, mas eu não quero perder o meu controle, hoje não.
O quarto estava escuro, os copos de uísque estavam vazios, os cinzeiros, cheios. Os lençóis estavam amarrotados, por mais que, agora, estivessem discutindo, ainda havia cheiro de paixão, amor, segredos, ainda havia cheiro de sexo.
Um quarto barato de um hotel freqüentado por travestis e prostitutas. Ficava na rua Lindolfo Collor, em São Leopoldo. O hotel não tinha uma fama muito boa, as pessoas que viviam ao redor, sabiam o tipo de pessoas que o freqüentavam.
Era necessário disputar espaço com as baratas, os ratos eram temidos, não tinham medo das pessoas, quando alguém se aproximava, eles atacavam; os únicos perigos irracionais eram os ratos e as baratas, mas não eram os únicos perigos. Algumas vezes era necessário desviar de algum louco empunhando uma faca, não era raro, várias prostitutas já haviam morrido ali, mas era o único lugar que eles podiam freqüentar, afinal, a sociedade respeitável, nem passava perto daquele hotel.
As paredes do quarto eram cobertas por mofo, sinais de infiltração e pela falta de reboco, há muito tempo avariado. O cheiro de umidade e de cachorro molhado era quase insuportável, cachorro não havia, o cheiro vinha dos ratos, e não eram poucos. Se houvesse silêncio, era possível ouvir as ratazanas andando pelos tubos de ventilação.
Havia, em todo o lugar que se olhasse, algum objeto decorativo que exalava histórias de outra época, obviamente, todos estavam cobertos por uma espessa camada de poeira, estavam em péssimo estado de conservação, mesmo assim, nos remetia ao seu antigo glamour, talvez aquele não fosse um lugar tão ruim.
Aquele quarto, afinal, ficavam sempre no mesmo, servia como esconderijo, refúgio; ali eles podiam ser reais, verdadeiros, podiam colocar em prática as reais vontades do ser humano, e não sentiam vergonha por isso, não ali. Por mais que o quarto não possuísse características para um romance de Shakespeare, ele servia como um grito de liberdade, um transbordar de alívio.
Os lençóis eram brancos, possuíam manchas amarelas; o assoalho já estava todo arranhado e tomado por cupins. Os balaústres da pequena sacada estavam enferrujados.
O banheiro estava em estado deplorável; os azulejos eram azuis, havia manchas pretas cobrindo a pia. Para a vaidade, havia apenas um espelho quebrado; a luz do banheiro, quando ligada, não parava de piscar, o que tornava o ambiente ainda mais sombrio, com uma tensão de filme de terror.
- Podemos parar de brigar?
- Sim, mas você sabe como isso me chateia.
Beijaram-se, como se precisassem matar a sede na saliva do outro, como se precisassem do ar contido nos pulmões do outro; beijaram-se com tanto ardor que pareciam fazer parte de um único corpo.
- Eu te amo.
- Eu sei disso, eu preciso muito de você.
- Eu sei, eu sei.
- Sem você eu não vou conseguir suportar as minhas torturas mentais, os meus carrascos sentimentais.
Bruno conhecia muito bem aquele hotel, até mesmo antes de conhecer Thiago. Muitas vezes dormiu lá com algum travesti ou com algum homem que, como ele, precisava manter os desejos sexuais escondidos dos outros.
Bruno gostava daquela podridão, daquela sujeira, gostava de se sentir como um animal no cio, precisava daquele cheiro, daquelas baratas, daquela umidade, precisava, até mesmo, das ratazanas.
- Eu não sei por que você sempre me traz nesse pulgueiro.
- É mais excitante, é mais vulgar.
Bruno gostava da vulgaridade, gostava da luxúria das ruas, adorava aquela vida mundana, era quase como uma droga, um vício, uma necessidade vital.
- Podemos começar a freqüentar outro tipo de ambiente?
- Talvez sim, mas aqui estamos seguros, aqui ninguém nos verá, não seremos descobertos.
- Eu não quero ter que me esconder dos outros, eu não quero viver como esses ratos e baratas. Sinto-me como se tivesse sido tomado por cupins, sinto como se algo estivesse me consumindo, me corroendo por dentro.
Thiago era romântico, gostava de dar e receber flores; acreditava que, algum dia, teria uma vida a dois com Bruno; restava saber se Bruno também pensava assim.
Thiago contava os dias para os seus encontros. O lugar marcado era sempre o mesmo, a portaria do hotel.
Quando a hora se aproximava, sentia como se o coração fosse saltar pela boca. Gostava daquela sensação; dizia que era paixão, desejo, enfim, um certo tipo de necessidade, de amor.
- Quer mais uísque?
- Não, daqui a pouco eu tenho que ir.
- Não vista a camisa. Adoro quando você fica sem camisa, vestindo apenas uma calça jeans, adoro ver seu corpo contra a luz da rua enquanto fuma um cigarro; daria uma ótima pintura.
- Você vai poder me ver assim todos os dias, só precisamos esperar as coisas se encaixar, a poeira baixar.
- Concordo.
- Eu gosto quando você fica deitado desse jeito, com as mãos sob a cabeça, com esse olhar ingênuo. Parece um anjo.
- Um anjo condenado ao inferno.
- Não fale assim.
- Mas é assim como me sinto.
- Isso vai passar.
- Eu espero que sim.
- Bem, eu preciso ir.
- Tão cedo?
- Sim, mas amanhã eu te espero aqui, no horário de sempre.
- Está bem.
- Eu pago o quarto.
- Vou me vestir, depois vou embora.
- Tchau, eu te amo.
- Eu também, tchau.

O que restou da escuridão - Capítulo 5 - A família Folkstore, atemporal

terça-feira, 14 de julho de 2009 às 10:00
Não era uma casa que os moradores pudessem se orgulhar de habitar, mas havia tudo que fosse necessário para criar os dois filhos do casal Folkstore. A casa era de cor bege, o que a deixava ainda mais sem vida; ficava na rua 1º de Março, ao lado do N.º 3883 (lembro-me apenas do número da casa ao lado, pois, lá, morava uma de minhas tias). Os pássaros não freqüentavam o jardim, e, as borboletas, já não eram mais vistas. Mesmo com a decadência dos bens materiais, a família Folkstore, possuía um nome respeitado. Todos sabiam onde moravam, e todos, ao passar pela casa, paravam para admirar uma beleza, há muito perdida. Nos áureos tempos, a família, era invejada pela vizinhança, por possuírem as mais belas roseiras já vistas em Novo Hamburgo. Agora, a erva de bicho, tomava conta dos canteiros de flores, as dálias já estavam mortas e, a primavera, seca, como o coração daquela família; da calçada, podia-se ver o telhado e as telhas que faltavam. Tudo parecia estar fora de lugar. Por causa do forte tráfego de automóveis, na rua da frente, a casa já apresentava rachaduras profundas, parte do muro lateral já havia desabado; não se podia ver a cor das balaustradas das sacadas, a ferrugem tomara conta de tudo, sem dizer que faltavam alguns balaústres. Havia buracos na calçada da frente; mas dinheiro não havia para os reparos.
A senhora Folkstore saía todos os dias com seu angorá nos braços, seu marido, o senhor Folkstore, sempre fora alérgico a gatos, mas, sua esposa, jamais se permitiu desfazer-se de seu único amigo naquelas tardes longas e vazias. O pobre angorá era sempre motivo para brigas, talvez, assim, os dois conversassem; talvez, se não fosse, o gato, a casa permaneceria em um silêncio sepulcral.
Havia algo de bom naquela casa, a iluminação fora bem planejada; as janelas eram amplas, o vento tinha caminho livre pelos corredores da casa; a poeira entrava sem empecilho, talvez tenha sido por isso que, a senhora Folkstore, nunca tenha conseguido manter a limpeza da casa. O senhor Folkstore nunca estava satisfeito com os serviços da esposa. Ela nunca estava satisfeita consigo própria. Talvez fora esse o motivo pelo qual comprara o angorá; talvez quisesse alguém que a fizesse companhia; que a ouvisse.
Quando ela estava sozinha em casa, as janelas permaneciam fechadas, detestara desde sempre a luz do sol; nos seus passeios, saía sempre com uma sombrinha de cor preta, coitada, era motivo de risos; alguns sentiam pena da pobre mulher, sozinha, naufragada em seus pensamentos. Dizia que o sol era cruel para sua pele branca, pode ser que sim, mas, não acredito que este era o único motivo; talvez quisesse esconder seu rosto, sua vergonha, sua vida. Os dias, naquela situação, eram longos demais, vazios demais. A perturbação que pairava sobre seus pensamentos, algumas vezes, a deixavam inerte, sem atitude, sem fala.
Ao ver um avião, sobrevoando sua casa, assustava-se; dizia que o ser humano não fora feito para voar, afinal, Deus, não nos dera asas; mas Deus também não nos dera rodas, quanto a andar de carro ela não tinha problema algum – talvez não andasse tanto quanto quisesse, também, a família quase não tinha dinheiro para comer, imagina se teriam dinheiro para comprar um carro. Recusava-se a andar de ônibus, dizia que aquele meio de transporte era para pobres; jamais se permitiu admitir que havia perdido a sua herança, por parte de sua mãe, é claro; jamais trabalhara; recebia apenas uma pobre pensão, pois, seu pai, servira o exército; mas nunca havia dinheiro suficiente; a pensão não bastava para manter o padrão que, a senhora Folkstore, estava acostumada.
O casal dormia em quartos separados, a senhora Folkstore recusava-se a limpar o quarto do marido.
Os dias fluíam calmamente na residência Folkstore; não havia preocupações que necessitassem muita atenção, também pudera, o luxo não pertencia mais àquela família. Se os problemas eram freqüentes? Com certeza! Mas não havia mais tempo disponível para resolvê-los, realmente não havia tempo; a vida estava acabando; o compromisso de criar os filhos já fora cumprido.
O casal orgulhava-se de passear com os dois filhos; pareciam dois lindos anjos, loiros de pele branca, como as nuvens, como as margaridas.
A caçula do casal, desde pequena, mostrava-se arisca; havia ali, uma personalidade rara, algo de indomável, incompreensível. O senhor Folkstore costumava dizer “vamos ter problemas com essa pimentinha”, ele sabia que seria algo fora do controle, algo que teria que ser levado até as últimas conseqüências. A esposa adorava passar as tardes na praça, acompanhada pela filha.
O primogênito, sempre se mostrou interessado pela arte, arte em geral; tinha talento, capacidade, vocação. O senhor Folkstore jamais gostara das atitudes do filho; no início, esse era o principal motivo de brigas do casal.
As crianças sempre estudaram nas melhores escolas que o dinheiro pudesse pagar – naquela época, o senhor Folkstore, ainda não havia contraído o vício no jogo, o que levaria a família à falência -, Sempre se orgulhara de poder pagar um ótimo ensino para sua invejada prole.
O primogênito do casal saía-se bem em tudo relacionado à arte, contudo, no resto, deixava a desejar. A caçula, pelo contrário, saía-se bem em tudo que fizesse, incluindo a arte; parecia ser a família perfeita, torpe engano, estava bem longe disso.
Os filhos cresceram e foram em busca de suas próprias vidas, deixaram a casa dos pais e, por isso, instalou-se o vazio, o vácuo, o nada, o ninguém.
Com os filhos já fora de casa, as conversas, tornaram-se ainda mais escassas, Antes do marido chegar em casa, a senhora Folkstore preparava o jantar; nem sempre havia muita coisa pare se fazer, mas ela sempre fazia com muita elegância; as conversas eram sempre as mesmas.
- O Bruno ligou?
- Não, ainda não.
- Eu não sei mais o que fazer com esse menino.
- Você não quer saber da sua filha?
- Não, e já disse para não manter contato com ela. Eu te proíbo!
- Ela ainda é minha filha.
- Isso não tem mais importância. Já disse que não quero mais ouvir o nome dela dentro dessa casa.
- Desculpe. Eu vou trazer o jantar.
- Faça isso.
Essa era a vida do casal.
Depois do jantar, a senhora Folkstore lavava a louça, enquanto isso, o marido, lia o jornal, sentado na sala, em uma poltrona estampada, fora de moda e rasgada.
Depois de todas as tarefas cumpridas, os dois dirigiam para seus respectivos quartos, fora assim desde sempre.
Os dias se repetiam; acabaram por cair em uma hipnótica rotina, jamais conseguiriam sair de lá; estavam unidos para sempre, pelo comodismo, até as sepulturas seriam lado a lado.
Os dias eram difíceis, os lençóis no varal, deprimiam a senhora Folkstore; aquilo era trabalho de serviçal, e ela, não tinha mais nenhum.
Um dia, na mesa de jogo, o senhor Folkstore decidiu apostar a própria casa; já havia perdido todo o resto, só não o fez porque Bruno foi buscá-lo; encontrou o pai envolvido por uma nuvem, formada pela fumaça dos cigarros e charutos. Não podia acreditar naquela situação. A prova de que sua família estava decadente, jazia sentada naquela mesa de apostas, inacreditável – pensou. Ao chegar em casa, naquela noite, encontrou uma esposa decepcionada. A vergonha era tanta que nem pôde olhá-la nos olhos Aquele foi o início da depressão da senhora Folkstore, não que ela fosse feliz antes disso, não. Mas aquela noite pode ser considerada o início do fim. A esposa, na tarde seguinte, decidiu abrir um buraco na parede; queria colocar tijolos de vidro, assim poderia passar as manhãs lendo a Bíblia, e assim, economizaria na conta de energia elétrica.
- É só isso que você sabe fazer?
- Algum problema?
- Só sabe ler essa porcaria?
- Não perturbe a minha paciência.
A mobília era demasiado antiga, fora de moda. Os cantos, da mesa da sala de jantar, já estavam esfolados, arranhados, destruídos; todos os móveis tinham, pelo menos, um arranhão visível, algum machucado, alguma marca. Toda a mobília tinha um cheiro estranho, poderia ser pelo fato de que, o mofo, já estava entranhado nas fibras da madeira. A única coisa que poderia ser feita, era livrar-se de tudo aquilo. E onde arrumar dinheiro para os novos móveis? Aqueles, já não eram tão desagradáveis assim.
- Pegou o meu vestido na lavanderia?
- Não, não tinha dinheiro para pagar.
- Eu só te peço coisas simples. É muito difícil fazer o que te peço?
- Você não faz nada o dia inteiro e todos os dias, pegue seus vestidos então.
A senhora Folkstore, insistia em mandar seus vestidos para a lavanderia; peças caras, de muito bom gosto, mas fora de moda; todas as suas roupas, sem exceção, estavam roídas por traças; as camisas brancas já estavam amarelas; todas as roupas já haviam perdido o brilho, o luxo, a elegância; mesmo assim, as roupas eram motivo de orgulho para ela. Talvez fossem as lembranças dos tempos em que o único problema, em relação ao dinheiro, era como seria gasto; uma viagem a Paris, um cruzeiro pelo Atlântico Norte...
- Preciso fazer uma viagem.
- Para onde?
- Vou ver alguns negócios.
- Negócios? Acredito que você não saiba o que vem a ser isso.
- Sempre muito irônica.
- Você está viajando todos os finais de semana.
- É verdade, mas isso é problema meu.
A senhora Folkstore, aproveitava as repentinas viagens do marido, para sair da realidade, para exercer a sua loucura, há muito trancafiada dentro do peito.
Vestia a roupa mais extravagante que tinha; usava todas as jóias (ao mesmo tempo), jamais quisera desfazer-se das jóias, talvez quisesse deixar de herança para Jane. Naquelas noites, com as jóias e as roupas roídas por traças, ela acendia dezenas de velas e as espalhava por toda a casa; sentava na poltrona do marido e bebia uísque em um copo com a borda quebrada; o chapéu deixava o seu rosto obscuro, não que não fosse, mas, com o chapéu, ficava ainda mais. Qualquer pessoa que entrasse na casa e visse uma cena daquelas, provavelmente, sairia correndo; até mesmo seu marido; mas ele não iria voltar tão cedo, estava “internado” – era assim que a senhora Folkstore se referia aos puteiros onde o marido costumava ficar durante dias; ela sabia que ele a traía; nunca cobrou fidelidade, afinal, nunca houvera amor -, ela sabia que ele não voltaria, pelo menos não nos próximos dias, e isso, a confortava.
Naqueles dias, quando ficava sozinha, costumava encher a cara e dormir no chão; acordava no dia seguinte com um gigantesco mau hálito. Se escovava os dentes? Claro que não, não beijaria ninguém, talvez jamais beijara. Naqueles dias, o angorá, de nome Quincas, ficava sem comida e sem água; ficava o tempo todo no colo da dona – isso quando ela não estava atirada no chão do banheiro, vomitando para todos os lados; já dormira dentro de uma poça de vômito.
Seria aquele o fim da senhora Folkstore? Não, ela jamais se deixaria morrer de uma forma desvairada como aquela; queria morrer quentinha, enquanto dormia.
Os três dias se passavam, e o senhor Folkstore estava de volta a sua casa.
As coisas estavam como sempre; parecia que nada havia acontecido; ele não percebera nada, e ela, obviamente, não falara nada; de uma forma, um tanto quanto torta, as coisas estavam normais.
- O Bruno ligou?
- Não, faz tempo que eu não falo com ele.
- Onde anda esse menino?
- Eu queria saber.
Bruno, o primogênito, é irmão de Jane, a caçula. Sempre foram bons amigos; um dia, não se sabe o porquê, brigaram, e a partir daquele fatídico dia, jamais se falaram novamente.
Com o passar do tempo Bruno cresceu, desistiu do mundo das artes e tornou-se um administrador de empresas – um verdadeiro orgulho para o pai. Jane estudara letras; tornara-se professora; trabalhava com adolescentes; as mães de seus alunos, algumas vezes desabafavam com ela; era pura, gentil, educada, por isso, transmitia confiança. É difícil entender como, uma pessoa tão agradável, conseguiu a inimizade de seus parentes. Motivos havia, mas somente os membros da família sabiam quais eram.

O que restou da escuridão - Capítulo 4 - Thiago, 23 de Junho de 1995

terça-feira, 7 de julho de 2009 às 10:00
- Eu preciso falar com você – Thiago estava nervoso.
- É necessário que seja agora?
- Acredito que sim.
- Não gostei do tom de voz. Continue – Jane não gostaria do final da conversa.
- Julguei ser eu, no mundo inteiro, quem mais merecesse o amor, julguei errado. Já tentei descrever a beleza da dor, e não a encontro. A dor é vil. Fui feito para amar desesperadamente, posso, até mesmo dizer, fatalmente, mas não fui feito para ser amado, fui, sim, para ser abandonado. Fui usado, de todas as formas cruéis, que uma pessoa pode ser, não me culparei por minha estúpida dor, apesar de ser o único culpado.
Sou intenso em demasia, apaixono-me facilmente, em todas às vezes, o meu cálido e frágil coração é partido, sem dó e nem um pouco de piedade.
Imaginam-me dormindo no berço da serenidade, cercado pela paz de espírito e envolvido pela plenitude dos pensamentos que envolvem a carne, torpe engano. Sou humano, sou amante, não sou amado, sou apenas mais um ser errante, ando sempre calado. A minha exótica máscara, de um ser completamente desinibido, é falsa.
Já sofri por complexas desventuras do meu insólito destino. Abater-me? Jamais! Sou forte porque tenho que ser, sou frágil porque essa é a minha verdade.
Tento descrever, nos mínimos detalhes, toda a beleza que pode ser encontrada em uma paixão, jamais conseguirei fazer, pois, sei que é impossível encontrar beleza e perfeição, onde não há.
Possuo um grande receio de revelar-me, de tal forma, para um mundo frio. Ainda não ensinaram-me a voar, e eu já nem sei se desejo aprender, a queda poderá ser de muito alto, os ferimentos, incuráveis.
Jamais direi que estou pronto para o amor, estou pronto para amar, mas para o amor, não. Sofro ao dizer que, na última vez que perdi o controle, de sentimentos antes controláveis, pensei em matar, pensei em morrer. Agora vejo o quanto fui tolo. A vida é uma ótima conselheira, nem sempre uma boa professora, mas uma ótima conselheira.
- Acho que é necessário alertar os que vivem, para que tomem cuidado com as “cobras” que rastejam sob as lindas margaridas, muitas vezes o belo, esconde o perigoso, e as conseqüências, podem ser um tanto desagradáveis – Jane previa o rumo da conversa.
- Jamais, eu repito, jamais perdoarei quem tenha me ferido. Bebo cálices cálidos, de puro veneno amargo, que me obrigaram a beber. Não reclamo, não me entendam mal, a vida não ensina nada, o que nos ensina, são as atitudes que tomamos, ao longo de nossas pobres vidas.
Aprendi cedo demais que, não existe mal caráter, existem pessoas com e pessoas sem. As que não possuem, são o verdadeiro perigo sob as margaridas.
- Esperei exaustivamente que você aparecesse ao pé da escada, enquanto eu fumava um cigarro, a única coisa que eu podia fazer, era esperar. Nunca esperaram por mim. Recebi sorrisos e gentilezas. Entristeço-me, quando entendo, o que eu não gostaria de entender. Fisicamente, fui contigo, espiritualmente, continuei esperando ao pé da escada – Jane parecia cada vez mais nervosa.
- Torno-me frio, igualo-me ao mundo, envergonho-me por isso. Mas, se eu tiver que ser frio, frio serei, e jamais me arrependerei de tal coisa. Atitude vulgar.
Sempre pedi licença para entrar. Quando “entravam em mim”, faziam arrombando, e assim, meu coração calejou-se, sua função, agora, é somente, e tão somente, manter as minhas fúteis atividades vitais.
Descreverei minhas próprias torturas, as que tanto me fizeram sofrer, as que me fizeram chorar em público, gritar a plenos pulmões sem que ninguém ouvisse, as que me destruíram por inteiro. Ainda hoje, recolho algum pedaço esquecido em algum canto empoeirado, e com isso, sofro mais uma vez. E o faço, porque escolhi fazer. Certamente me arrependerei, e sei disso, mas faço, para aprender que o mundo não vai girar, do jeito que eu quero que ele gire, então, posso desistir de querer que as coisas sejam do jeito que eu quero.
Sabemos que o Bem, no final, sempre vence o Mal, mas isso acontece somente no final. E alguém sabe onde se esconde o fim? Posso afirmar então, que o Mal, em sua completa inferioridade, ainda assim, consegue ser superior ao Bem, que se dobra por bondade ingênua. Os dois lados, um dia, aprenderão a equilibrar os dois lados da balança. Isso me apavora – Thiago já não sabia mais o que pensar.
- Seremos falsos, como certas “cobras”? Serão as “cobras” seres bons, como os anjos que tocam violinos, até que a água toque seus pés? Seremos seres de “duas caras”? Seremos responsáveis pelas nossas atitudes desprezíveis? Ou será que o ambiente, em que estaremos encenando nossas tristes vidas, será o cruel responsável por atitudes banais de pura maldade?
- Eu plantarei o meu jardim, e plantarei o de quem quiser que eu plante. Regarei as flores, chamarei os passarinhos, soprarei as nuvens para bem longe e pedirei ao Sol, que ilumine todo nosso trágico caminho, digo trágico, porque aprendi, que a dor física não pode ser evitada, mas sou eu quem escolhe sofrer, ou não.
- Cansei! Estou cansada das cruéis “cobras” rastejando ao redor de meus castos pés, cansei de ouvi-las dizerem maus presságios ao meu ouvido, há muito maculado. No entanto, sei que sou a única responsável por ouvir as tais “cobras”, e por deixá-las rastejar no chão, onde piso. Eu pagarei um preço muito alto por isso. Essa dívida me levará a falência; recuperação, não terei. Mas começo a minha jornada, por este soturno caminho, com quatro pedras nas mãos. E que me aguardem as “cobras”, seus pescoços servirão de alvo para os meus destemidos e determinados pés.
Existem no mundo, dois tipos de pessoas. As que querem morrer; e as que desejam matar.
As que querem morrer serão responsáveis pelo seu mórbido destino. Foram essas que fizeram o que foi necessário fazer, para alcançar posições superiores. Merecerão uma morte lenta e dolorida. Nem sempre me refiro à simples morte do corpo, porque essa considero libertação. Refiro-me à morte do que se acreditava.
As que querem matar possuem uma sede pelo saber, pelo amar, pelo respeitar, e mantém a relação com outros seres humanos, ao invés de apunhalarem pelas costas. Esses sobem juntos, e afirmo que serão imortalizados.
Ídolos, eu tenho muitos, mas são poucos que eu admito ser, e os que matam, são.
Sofrer é o destino de todos os que pisam o solo desse planeta, os que matam, vivem no sofrimento, assim desejaram, porque são sensíveis, e a dor de todo o mundo os afeta. São seres superiores por natureza e não podem mudar isso. Por mais que tentem fugir, os sinais estarão sempre ao redor.
Os que querem morrer, também sofrem, mas esses são completamente indiferentes ao que acontece ao seu redor. Esses, pobres seres, não possuem amizades sinceras, porque suas “pequenas personalidades” não os permitem ter: ombros para chorar e ouvidos para ouvi-los. Triste destino, e digo triste, no pior dos sentidos, porque partilho da idéia que a melancolia, é infinitamente mais bela, do que a falsa felicidade. Afinal, não somos palhaços, para que tenhamos sempre um sorriso estampado em nossos rostos. Até mesmo o Palhaço, depois de retirar sua maquiagem, torna-se também, somente mais um ser de carne e osso, triste, em meio a uma multidão, onde não se sabe quem são as margaridas, e quem são as “cobras” – Jane parecia saber o motivo da conversa.
- O mundo continua girando e nos lançando a novas situações, nem sempre agradáveis, mas sempre necessárias para o nosso aprendizado, e para que tornemos pessoas mais fortes, diante as desventuras, que ainda encontraremos em nossos caminhos.
- Muitas vezes, o nosso caminho, parecerá solitário, mas bastará olhar para os lados, para que vejamos os nossos verdadeiros companheiros, em nossa árdua trajetória. Você também poderá olhar para trás e ver as “cobras”, paradas no mesmo lugar, tentando se desenrolar umas das outras. Elas, pobres, não sabem caminhar de mãos dadas. Pisam umas nas outras e acabam enroladas por suas atitudes. Um dia, morrerão pelo próprio veneno.
- Eu odeio o bom gosto, eu detesto o bom senso. E para que servem os malditos bons modos? Para conviver em sociedade? Vale a pena? Acredito que não.
Não serei hipócrita em dizer que cordialidade não se faz necessária. Eu não aceito falsidade, mas aceito falsa cordialidade. Na sutil diferença, está o segredo para viver em sociedade, onde os olhos estão voltados para nossas fúteis vidas, de estar sempre na moda, de freqüentar as casas de shows do momento, e viver como um “boi banal” em meio a uma “boiada normal”.
Apavora-me o fato de estar cercado por uma multidão de pessoas e o meu espírito estar tão sozinho, sentindo-se abandonado em um canto qualquer.
Desejo, noite e dia, que o mundo pare, no exato momento que eu desejar, e que eu possa sair andando pelo universo. Sem bom gosto, sem bom senso e sem os malditos bons modos. Entorpeço-me em quimeras lânguidas. Desisto de tentar ser quem eu não sou, mas tentarei ser o melhor que puder – Thiago estava com um tom de voz de uma pessoa desequilibrada.
- Você fala dessa forma porque, a essa altura da vida, não acredita mais na falsa cordialidade – talvez Jane tivesse razão.
- Não desejo mais viver em sociedade, não em uma que me deprime.
Eu corro muito rápido para alcançar objetivos incomuns. Para os outros eu estarei correndo, somente, e tão somente, por correr. Banal engano. Todos nós podemos errar, mas não aceito que errem comigo. Sou egoísta, admito. Não existe uma Segunda vez, então, acerte na primeira.
- Não vou julgar você, os outros o farão. Nem sempre você vai encontrar no seu caminho, uma pessoa tão compreensiva, como eu. Tentarei ser egoísta também, não te dividirei com mais ninguém.
Engano-me facilmente, simplesmente porque quero acreditar no que os outros jamais acreditarão.
- Eu não vou mais fingir que as coisas continuam indo bem, não. Há muito tempo eu não sinto mais o que, supostamente, deveria sentir por você.
Foram tantas noites sem dormir. Naquelas noites, a única coisa que eu conseguia pensar, era em você, nos seus cabelos, no seu sorriso.
Eu te vejo mais como uma luz do que como ser humano. Eu quero alguém mais real, mais de verdade. Entende? Não posso mais mentir, dizer que não tenho necessidades. Não posso fingir que não existem os vazios para serem preenchidos.
- Porque isso agora? Mais uma vez você vai me abandonar. Eu vou ficar triste, vou pensar em morrer, e quando a dor passar, você vai querer voltar, e eu, sem pensar duas vezes, vou aceitar. Talvez porque eu saiba que, isso, é matar-me aos poucos, com pouca dor, mas muito sofrimento. É, talvez eu goste de sofrer – Jane parecia cansada de toda aquela situação.
- Eu sinto muito, mas acredito que essa será a última vez. Eu encontrei outra pessoa, e estou me encontrando com ela há dois meses. O chato nisso tudo, é que você conhece.
- Quem é?
- Isso não interessa.
- Quem é?!
- O Bruno.
- Como?
- Ele mesmo.
- Como você pôde? Isso é cruel demais, até mesmo para você.
- Eu não queria que você ficasse sabendo de uma forma ruim, então, resolvi esperar o momento certo.
- E há um momento certo para isso?
- Não sei o que dizer.
- Precisava ser com o Bruno? Não poderia ser com alguém mais distante de mim? Acho que não! Começo a pensar que, talvez, vocês tenham planejado tudo isso.
- Não, por favor, não. Eu jamais conseguiria dizer uma coisa dessas de caso pensado. Seria maldade, eu jamais conseguiria ser mal com você, não com você.
- Eu sinto muito te deixar com remorso, mas isso foi a pior coisa que já fizeram para mim. Eu não acredito que o Bruno foi capaz de algo tão baixo.
Devo admitir que ele se superou, mas eu jamais poderia esperar isso de você. Como tudo isso aconteceu?
- Eu prefiro não dizer.
- Ah, você vai dizer.
- Não, não vou.
- É isso então? É assim que acaba?
- Acho que sim. Não torne as coisas mais difíceis para mim.
- Ah, desculpe estar deixando você com remorso, não foi minha intenção. É muita frieza da sua parte falar uma coisa dessas.
- Por favor.
- Por favor? Por favor, digo eu.
- Eu vou embora.
- Espere, Thiago.
- Eu não desejo esticar essa conversa.
- Posso te pedir uma última coisa?
- Sim.
- Abraça-me?
- Claro.
- Mais forte. Mais forte. Mais, mais, mais...
- Chega, Jane! Eu preciso ir.
- Volte.

O que restou da escuridão - Capítulo 3 - Fabrício, 17 de Novembro de 1999

terça-feira, 30 de junho de 2009 às 10:00
- Olá, bom dia minha querida.
Deixe-me abrir estas cortinas pesadas e mórbidas. Estão iguais a este quarto. A rua ainda está muito molhada, a calçada está repleta de poças. A noite de ontem foi chuvosa em muitos sentidos.
O sol está com uma expressão peculiar nesta manhã, parece querer exibir todo o seu esplendor, talvez queira tirar das nossas cabeças as pesadas nuvens da última tempestade. É interessante pensar que, de um jeito ou de outro, nós sabemos que o sol nascerá todas as manhãs. O dia pode estar nublado ou não, fato é que ele sempre estará lá – pensou Fabrício.
Passei no florista, comprei para você três dúzias das mais bonitas margaridas que fui capaz de encontrar, o vendedor disse que havia trazido da estufa esta manhã. Estas pessoas de olhos puxados sabem como cultivar flores. Espero que goste delas. Faz tempo que este quarto não via um pouco de cor, de vida. Acho que faz tempo que eu não vejo cores também. Não tem problema, as coisas acontecem como devem acontecer, e eu não tenho o poder para mudá-las, e se tivesse, provavelmente eu não teria o direito de direcionar os meus sentimentos no caminho de minhas vontades.
O sol está realmente bonito esta manhã, mas acho que no cair da noite as tempestades voltarão. E talvez o dia não amanheça como deveria no dia de amanhã – pensou ele.
Passou bem a noite, minha querida?
Eu cheguei completamente molhado em casa. Quando a chuva começou, eu estava na rua. Estou sempre esquecendo de levar o guarda-chuva, quando eu conseguir adquirir este hábito, provavelmente, transformarei o país em um deserto completamente seco. Então, por enquanto, acho que está muito bem do jeito que está.
Ontem cheguei em casa sem paciência para cozinhar, então botei uma pizza no microondas, daquelas que a gente compra no supermercado. Estava passando um filme que você gosta na TV, Hair. Nunca entendi seu gosto por este filme. Tão sem graça, tão fraco. A pizza era de quatro queijos.
Dormiu bem?
Eu nem sei por que ainda pergunto.
Eu estava passando pela Marcílio Dias, e na esquina com a Nações Unidas, encontrei uma pessoa. Adivinha quem era. O Thiago. Pois é, ele mesmo. Estava todo apressado, dizendo que precisava correr, se não, poderia se atrasar para o trabalho. Eu falei de você, ele ficou muito preocupado, acho que não entendeu muito bem a situação, ou talvez não quisesse entender. Eu ainda não consigo entender o afastamento de vocês. Pareciam combinar tanto. Bem, passado é passado.
Ele está tão bonito, nem parece aquele garoto louco, cujo único objetivo era tocar violão e assistir o pôr-do-sol na beira do Guaíba. Estava vestindo terno e gravata, cabelo bem cortado, barba feita. Os incríveis olhos azuis ainda são os mesmos, o brilho ainda transmite um certo ar de juventude domada.
Depois que voltou para o Brasil, passou a morar novamente com os pais, disse que não tem capacidade de morar sozinho. Talvez não tenha mesmo.
- Com licença. Bom dia.
- Bom dia enfermeira.
- O senhor chegou cedo hoje.
- Pois é, acho que acordei disposto.
- É bom para ela que, pelo menos, um dos amigos fique aqui na fase final.
- Para ela pode ser, mas para mim, está sendo uma completa tortura, vê-la neste estado...
- Não se preocupe, o sofrimento dela não se estenderá por muitos dias.
- Que remédio é este?
- A morfina, a dor deve ser insuportável.
- Não diga isso.
- Desculpe senhor, mas é que você disse que gostaria de saber todos os detalhes.
- Desculpe, ando muito nervoso nestes últimos dias.
- Eu entendo.
- Não, o pior é que você não pode entender.
- Sinto muito.
- Obrigado.
- Eu volto mais tarde para ver se está tudo sob controle. Se precisar, é só apertar aquele botão, eu virei o mais rápido que puder.
- Farei isso, se for preciso.
- Até mais tarde.
- Até, e muito obrigado.
- Não agradeça, este é o meu trabalho.
Os dois estavam novamente sozinhos no quarto.
- Bem, voltando ao nosso assunto. Ele me disse que entraria em contato, eu não acredito, mas ficarei esperando como um bobo. Talvez eu mereça estar sozinho, nunca consigo controlar os meus sentimentos quando estou com ele. Ele tem esse poder sobre mim. Se soubesse, provavelmente nossa amizade seria quebrada, e isso seria o fim para mim.
Posso colocar as flores neste vaso? Acho que vai ficar lindo se ficar perto da janela, as margaridas ficam sempre mais bonitas quando iluminadas pelo sol.
Você já reparou que, em um dia chuvoso, quando passamos por um jardim repleto de margaridas, a chuva parece não afetar aquele aspecto alegre, espalhafatoso, que elas possuem.
Eu não sei o porquê, mas sempre preferi as flores que não fossem do gosto popular. Enquanto todos gostavam das rosas, eu plantava hortênsias. Enquanto as pessoas importavam o tipo mais raro de orquídea, eu sempre roubava as margaridas do jardim de minha mãe.
Não sei por que, mas as hortênsias lembram-me aquelas senhoras, que sentam na praça e gastam o dia inteiro jogando milho para as pombas. Elas vestem aquelas saias desbotadas e suas mãos cheiram a alvejante, estão sempre com o rosto oleoso. São boas cozinheiras e adoram doces. Talvez elas possuam muitos motivos para voltar para casa, mas deixam estar. Preferem banhar-se com o sol da tarde. Muitas são viúvas, as que não são, provavelmente deixaram os maridos sentados na sala de casa, naquelas poltronas antigas, com flores estampadas. Talvez a sala esteja escura, talvez o marido fique com preguiça ou talvez não tenha mais força para levantar e ligar a TV. Talvez quando essa senhora chegar em casa, encontrará o marido enfartado, sentado na poltrona, exibindo um sorriso sereno, calmo.
Acho que é por isso que eu sempre gostei das hortênsias, elas lembram-me aquela típica figura das avós, que sempre estão com o nosso bolo preferido pronto. Parece que adivinham quando vamos visitar.
Você já reparou que nós nunca conseguimos ver as nossas avós como crianças? É estranho pensar que um dia elas já foram pequenas. Eu sempre tive a sensação de que a minha já havia nascido com 70 anos, com aquele cabelo branco, aquelas rugas. Sempre pensei que ela soubesse cozinhar desde sempre. Não sei, mas não consigo imaginar a minha avó fazendo xixi nas fraldas e chorando por uma mamadeira. Não consigo vê-la como uma adolescente rebelde, mandando meus bisavós à puta que pariu. Talvez seja por isso que eu goste tanto das espalhafatosas hortênsias, elas se parecem com a minha avó.
Ficaram perfeitas perto da janela, eu falei que ficariam, talvez elas consigam tirar este cheiro de morte desse quarto.
Essa melancolia no seu olhar é que me mata. Não sei mais o que dizer. Já pensei em não vir mais te ver, mas acho que eu não gostaria de não estar aqui quando a hora chegar. Eu não deveria estar falando essas coisas para você. Eu deveria estar lhe incentivando, falando sobre coisas alegres, sobre o mundo lá fora. Mas o mundo não é um lugar bonito, tão pouco feliz. Eu também não sou. Não sei por que achei que eu pudesse ser a pessoa certa para estar com você na fase final. Talvez eu achasse que teria força suficiente para segurar a sua mão, acho que não tenho, mas essa é uma percepção tardia.
Acho que vou ao cinema antes de ir para casa, preciso sair da realidade por algumas horas, as salas de cinema sempre me ajudam, são minha saída de emergência. Concordo que é preciso ter força, ser corajoso, e o pior é que eu não creio que essas qualidades são completamente aplicáveis a mim.
Talvez eu seja fraco, covarde. Talvez eu não quisesse estar aqui, talvez eu nem devesse estar aqui. Eu queria ouvir da sua boca que estou livre para ir e não voltar mais, eu queria que você pudesse dizer isso. Eu sairia pela porta e, com certeza, não voltaria mais. Tentaria esquecer de você, esquecer que existiu e que sentirei saudade.
Eu nem sei por que continuo falando com você como se quisesse ouvir a resposta. Talvez eu precise de alguém que diga a resposta que, há muito tempo, desejo ouvir.
Todos nós tentamos, de alguma forma, mudar o mundo. Talvez ficando aqui eu esteja fazendo a minha parte, talvez não. Eu sei que depois de tudo isso eu continuarei sendo a mesma pessoa, nem melhor nem pior. Apenas a mesma pessoa. Talvez eu fique um pouco mais triste, mas acho que será por pouco tempo. Somente até esquecer essas semanas no hospital, essas tempestades, dentro e fora de mim. Nem sei quantos raios já senti dentro do peito. Nem sei como ainda bate um coração sob as minhas costelas. Talvez eu tenha disparado na direção errada, talvez eu tenha errado o tiro.
Acho que tudo isso servirá como lição, como aprendizado. Acho que no mês que vem você não estará mais aqui. Quem sabe quanto tempo tudo isso vai durar? Esses podem ser os últimos momentos da sua vida. A última respiração, a última lágrima.
Eu queria poder ler sua mente, queria saber o que se passa dentro dos seus pensamentos, queria entender quais são, e para quê servem estes últimos sentimentos.
Talvez sejam aqueles que torturam a gente pela vida inteira, talvez eles se aglomerem nos últimos momentos, servem somente, e tão somente, para torturar a nossa lucidez. Talvez tudo vire uma gigantesca nuvem de tédio incompreensível, pode ser que você esteja louca.
Eu não estou comovido com a sua situação, realmente não estou. Acho que não estou em outro lugar, porque não tenho nada mais interessante para ser feito, talvez eu esteja onde realmente queira estar, eu não sei mais.
Faz algum tempo que eu decidi que me tornaria indiferente em relação às questões produzidas em uma cena mórbida. Acho que tentei construir um mundo paralelo, ou talvez seja transversal dentro de duas linhas retas, fato é que, construí esse mundo para abrigar a minha mente insana. Não quero que ela fique muito tempo vagando por entre as regras de um jogo que eu ainda não aprendi jogar. Talvez esse empreendimento não resolva nada, mas eu vou ter tentado.
Eu nem sei como entregar os pontos, eu destruí toda a minha capacidade de amar. Talvez eu enterre o entulho junto com você.
Expulsaram-me do jogo. Eu não tinha pedido para participar. Que situação contraditória, eles te obrigam a entrar no tabuleiro, e quando se cansam, jogam você no lixo. O estranho é que você não pede para entrar, e quando está aprendendo as regras, eles te eliminam. Você fica com uma cara de idiota, mas, mesmo assim, tem que baixar a cabeça e abandonar a partida. É possível entender algo desse tipo? Acho que devo afogar as minhas vontades. Os meus pesares, já enterrei. Devo admitir que aprendi muitas lições com eles, mas, hoje, não servem mais.
Os fantasmas ainda me atormentam, não adianta eu dar o melhor de mim, eles nunca me deixarão em paz. Durante a noite, eles atormentam o meu sono, nem sei como eu ainda consigo acordar disposto. Eu tenho que lutar todas as noites contra os cruéis espíritos que tentam puxar os meus pés.
Quando chegar a minha hora, farei o possível para juntar todos esses sentimentos em um caldeirão, eu cobrarei dos verdadeiros responsáveis tudo que está acontecendo, nem que para isso eu precise bater de porta em porta.
Não quero transformar a minha mente em uma gigantesca tragédia. Farei com que os meus verdadeiros carrascos paguem a minha conta. Conquistei muitas coisas, eu não sabia que teria que pagar por elas. Eu vejo os meus pensamentos como duas linhas paralelas que insistem em se cruzar. Adquirir controle sobre tudo que se passa em uma vida, pode ser uma teoria muito bonita, porém, é uma conquista que pesa durante a viagem. É aquela mala que demorou para ficar pronta, e no final, você percebe que a maioria das coisas que está carregando, não servirão para absolutamente nada. Na exata hora que você decidir abandoná-la, perceberá que é algo impossível. Os malditos fantasmas sussurrarão nos seus ouvidos que a responsabilidade é exclusivamente sua. É realmente impossível abandonar uma bagagem de tal importância. Você se acostuma, no final do caminho, depois de ter tentado passar adiante, você perceberá que se acostumou com o peso extra.
Bem, acho que já falei bobagens demais por hoje, meus devaneios foram longe.
Preciso ir embora, volto amanhã.
Durma bem, Jane.

O que restou da escuridão - Capítulo 2 - Jane, 16 de Novembro de 1999

terça-feira, 23 de junho de 2009 às 10:00
- Oi! Tudo bem com você?
- Oi! Comigo está quase tudo bem. E com você?
- Estou trabalhando demais, mas essa é a vida. O que você tem feito?
- Nada em especial, não ando salvando o mundo e nem descobrindo a cura das doenças.
- Você ainda mora na Rua da Praia?
- Sim, moro. E você? Ainda morando na casa dos pais?
- Pois é, não anda fácil conquistar a completa independência. Nunca fui alguém que pudesse orgulhar-se de seus dotes culinários, ou até mesmo de lavar um banheiro como ninguém. Acho que eu não conseguiria sobreviver morando sozinho.
- Não é fácil trabalhar, estudar e ainda manter a organização de uma casa.
- É verdade. E como anda a Jane?
- Nada bem. Os médicos dizem que não vai durar muito. O câncer a pegou de jeito. Está internada há quase um mês.
É insuportável entrar naquele quarto, nem a família a visita. Dizem que não pertence mais a casa do pai, que perdeu-se no mundo, que, para eles, ela está morta. Coitada! Não anda nada bem nesses últimos dias, não reconhece mais ninguém.
Resiste, um dia após o outro, porque o corpo já nem sabe mais o que deve sentir ou o que sente, recebe doses sem fim de morfina, todos os dias.
- Como foi acontecer isso tão repentinamente?
- Ninguém sabe. Essas coisas são inexplicáveis.
- Isso não poderia ter acontecido com a Jane.
Eu ainda lembro de seus lindos cabelos loiros sendo levados pelo vento, enquanto o sol iluminava os inquietos fios dourados.
O perfume dela preenchia o ambiente quando ela entrava. Todos a queriam muito bem. A vida pode ser bem cruel com os seres bons.
- É verdade. Ela não merecia isso, na verdade, ninguém merece acabar daquele jeito.
Lembro também dos vestidos que ela gostava de usar. Parecia um anjo andando pelas tumultuadas ruas de Porto Alegre.
Os pores-do-sol eram sempre mais bonitos quando ela estava ao nosso lado.
O mais aterrorizante de tudo isso é ver que os amigos mais fiéis, aqueles que diziam que estariam sempre ao lado dela, foram os primeiros a se afastarem quando ficaram sabendo da doença. Eu também pensei em não visitar mais. Queria gravar na memória as risadas, as lágrimas, as paixões, os vestidos. Queria lembrar-me apenas do perfume e dos famosos fios dourados. Queria deixar no porta retrato da memória apenas a voz e o olhar.
Os mistérios dos tortuosos caminhos do destino podem ser assustadores.
- Ela ainda fala com você?
- Não, ela nem sabe mais quem é.
Acho que a antiga Jane já deixou aquele corpo há muito tempo. Aquela que está na cama daquele hospital, é só a carcaça, a capa, a cápsula.
Na verdade nada mudou. Ela ainda é linda, mas não está mais aqui. Acho até que ela não está mais em lugar algum. Talvez tenha virado vento, ou tenha virado raio de sol. Acho que agora ela é aquela margarida, que a gente colhe com pressa em um dia chuvoso, só para não chegar com as mãos abanando na casa da namorada. Ela pode ser também aquele gole de uísque que desce queimando a garganta. Ela pode ter se tornado a costumeira gargalhada entre amigos, a conversa ao redor da mesa de um bar, os segredos velados. Agora ela é um relicário de sentimentos não expressados, daqueles que torturam a alma, porém, sem eles, não conseguimos viver. Sem eles fica impossível seguir em frente.
- Deve ser difícil ser o único a ficar com ela.
- É difícil e mortificante. Cada vez que escorre uma lágrima pelas têmporas dela eu tenho vontade de acabar com tudo, tenho vontade de dar alívio para o sofrimento de seu corpo, de libertá-la desse martírio. Mas se eu fizesse isso, seria considerado um assassino.
Aquilo não pode ser a vontade de Deus. Acabar daquele jeito é cruel.
Eu não consegui acreditar quando o telefone tocou aquela noite, parecia que eu estava prevendo. Ela própria me contou a situação que viveria. Pediu que eu me afastasse, eu fiquei sem palavras. Naquela noite eu peguei o carro e, a única coisa na qual eu conseguia pensar era jogar-me em direção a qualquer poste.
Quando ela falou que morreria, de início, eu não entendi. Ela nem sabia que estava matando uma parte fundamental da minha alma. Não senti arrependimento algum em sua voz, estava plena, calma, conformada.
Acho que a própria Jane não tinha noção da proporção daquela notícia. Acho até que a sanidade foi embora antes de ela poder analisar toda a situação, melhor assim. Está alheia, alienada.
Acho que não choro mais ao falar dessa história porque já sei qual será o final. Sei também que, quando ela se for, perceberei que não estava preparado. Por que agora? 24 anos não é cedo demais?
Alguns dirão que é a vontade de Deus, que as coisas já estão pré-concebidas, que o que é para ser, simplesmente será.
A sensação de total impotência, em relação às vontades da morte, é torturante. Eu espero que este sofrimento não se arraste por muitos dias. Ela era um ser puro, simplesmente bom, vulnerável no alto de sua autoconfiança.
- O incompreensível serve para aprendermos que existem coisas que não valem a pena serem questionadas.
- Pois é, outro dia encontrei o Bruno. Segurou-se ao máximo para não perguntar nada sobre a irmã. Coitado, é uma simples marionete do pai. Ficamos em uma situação muito constrangedora. Não tínhamos assuntos em comum. Eu me despedi e ele seguiu em frente, sem se quer mostrar-se interessado pelo estado débil da irmã.
- Eu fiquei sabendo que ele passou uma temporada em Paris.
- Acho que sim, não tenho muita certeza.
- Eu vou tentar entrar em contato com você, para saber como andam as coisas.
- Vou esperar, o meu número ainda é o mesmo.
- Bem, eu preciso ir agora. Se eu não for, acabo por me atrasar para o trabalho.
- Tudo de bom para você.
- Para você também. Tchau.
- Tchau.

O que restou da escuridão - Capítulo 1 - Os dias

terça-feira, 16 de junho de 2009 às 10:00
Tudo começa com um simples filete de luz atrás da serra. Tudo parece estar normal. O sol está a caminho de fazer um novo dia. Nem belo, nem feio, apenas mais um dia. Se houver necessidade de chuva, provavelmente, o sol entenderá.
Bem, fato é que, a esta altura do relógio, o dia já está valendo. Todos sabem quais são as características de um dia, então vou falar do que nos interessa, na verdade não. Acho que não posso falar das coisas que simplesmente nos interessam, devo começar pelas coisas que dizem respeito às histórias que se seguirão. Talvez elas já tenham acontecido comigo em alguma falha do tempo. Ou talvez eu possa ter entrado em algum buraco de minhoca e tenha conseguido fugir dos acontecimentos que, aqui, serão contados.
Pode ser que uma dessas histórias tenha acontecido com você. Quem sabe? Talvez não tenha acontecido, mas de um jeito ou de outro, vai acabar acontecendo. É sempre bom estar preparado, ou pelo menos sentir-se assim.
O relógio está despertando. Você vai querer ficar mais dez minutos na cama, não o culpo, nem sempre é fácil abrir os olhos e encarar o sol.
Pode revirar-se um pouco mais em baixo do cobertor, quando for realmente necessário eu digo.
Pois bem, contar a história dos outros não deve ser caracterizada como uma tarefa comum, mas quando você viveu junto com os personagens, você já faz parte da tal história. Então vou fazer o seguinte: vou contar a história e vocês jamais saberão se eu estive presente, jamais saberão se sou um dos personagens e também não me encontrarão nas palavras de nenhum dos personagens que eu escolhi para contar essa história.
Acontece uma coisa estranha quando você percebe que tem o dever de passar para os outros, fatos que você conhece ou tomou conhecimento pelas histórias que já ouviu na rua. Você se torna o dono dos passos, da respiração, dos pensamentos. Mesmo que os personagens não sejam inventados, eles não serão completamente reais. Isso pode tornar a história, um tanto quanto, conflitante, principalmente para mim. Na maioria das vezes eu tentarei ser o mais cruel possível, afinal, eu pretendo transmitir uma realidade completamente paradoxal.
Eu queria ser a menina que chora sozinha no chão do banheiro após ter sido largada pelo namorado. Ela não possui a certeza de realmente amá-lo, mas ela fica feliz ao chorar, sente-se humana, capaz de sentir algo. Talvez se ela ainda namorasse com ele seria apenas um vegetal com seu cabelo verde e seu piercing no nariz. Talvez até fizesse uma tatuagem com o nome dele. Ela poderia fingir não estar arrependida de ter feito a tal tatuagem, talvez ela até dissesse que é para nunca esquecer do dia em que ela foi tola o suficiente para perder o controle dos próprios sentimentos. Talvez os outros acreditem, talvez não.
Eu poderia ser também aquele garoto pobre da periferia, cujo único objetivo é ser jogador de futebol. Ele sai da cama cedo, nem se dá o trabalho de escovar os dentes, abre a porta do barraco onde vive e desce o morro para encontrar os amigos, vai passar a manhã inteira jogando no campinho de chão batido. Talvez a mãe desse garoto saiba que ele não tenha chance. Talvez ela insista todos os dias para que ele estude mais. Talvez o pai dele tenha abandonado a esposa, deixando para trás os seis filhos. Quem sabe se a mãe dessa família já não pensou em abrir mão de tudo também? Talvez essa idéia já tenha passado pela cabeça dela. Pode até ser que o feijão e o arroz estejam acabando. Mas quem disse que ela perde o sorriso ao arrumar a casa pobre?
Acho que agora todos vocês podem entender melhor como é difícil tomar as rédeas da vida de uma pessoa. Quem dá a dosagem? Quem diz quando a gente está sendo cruel ou insano demais? Quem pode nos dar este termômetro?
Talvez seja esta a beleza de todas as histórias já contadas, o fato de não ter como saber qual será o destino de todos os nossos insanos pensamentos, de nossas vontades desvairadas. Talvez este seja o segredo. E talvez não haja beleza alguma no saber de tudo, em saber das coisas. Talvez não saber seja o almejado segredo.
Bem, acho que está na hora de sair da cama. Por mim você poderia ficar aí o quanto quisesse, eu realmente não me importo. Mas se você continuar na cama eu colocarei chuva nessa história. Então não me faça começar de um modo triste. Levante-se e abra a janela, deixe o sol entrar, arrume a cama. Quero ouvir em alto e bom som um enorme “bom dia” para as margaridas no jardim.
Tome seu café, leia as notícias do dia no jornal que está na porta da frente. Depois de tomar o café e saber das notícias do dia anterior, vá até a estante e escolha um livro, algo do seu interesse, talvez você dê sorte e escolha a minha história.
Sente no sofá e descubra.

O que restou da escuridão - Introdução

terça-feira, 9 de junho de 2009 às 10:00
Ao ler as introduções ou dedicatórias de alguns dos meus livros favoritos eu me perguntava: o que fez tal pessoa para ser merecedora de tão bonita homenagem? Acho que agora consigo entender o porquê de uma obra ser dedicada a uma pessoa. Talvez essa pessoa tenha sido a responsável pela abertura de uma porta escondida no subsolo da nossa própria interpretação de nossa mente. Essa pessoa talvez tenha me mostrado como chegar a tal porta, talvez tenha me entregado a chave e talvez tenha me acompanhado no início do descobrimento de minha própria criatividade. Fato é que eu jamais terei palavras para agradecer a responsável pelo descobrimento de tão valiosa porta.
As coisas acontecem do exato jeito que foram feitas para acontecer e nem eu e nem você seremos capazes de mudar o curso de tão voraz rio de pensamentos.
Eu decidi não escrever histórias com finais felizes. Talvez eu goste do jeito cru que a vida tem perante os admiradores perspicazes. Eu jamais seria tal pessoa se uma certa professora não tivesse cutucado a caixinha que mantinha sob controle as minhas visões insanas sobre a vida.
A partir do momento em que fui incitado a despejar no papel tudo aquilo que havia tatuado em minha mente eu pude descobrir a beleza de tão desprendida atitude.
Não há bem que eu possa desejar, mas como não me contento em não saber como dizer, esforçar-me-ei para transmitir os meus melhore votos para a guardiã da chave.
Que você jamais deixe de acreditar que os obstáculos não são intransponíveis.
Que você jamais deixe de ter tão agradável espírito.
Que você esteja plena em seus desejos e que eles sejam alcançáveis.
Que você consiga a paz dos pés descalços sobre a terra batida.
Que continue introduzindo esperança, alegria e confiança nas pessoas que você cativa.
Como dito anteriormente, eu jamais conseguiria encontrar palavras para expressar tamanha gratidão.
Que você encontre a plenitude e o perfeito equilíbrio, mesmo que seja preciso estar em uma casa de chão batido e telhado de palha.
Que você continue fazendo as pessoas felizes do jeito que você me faz desde o primeiro dia que te conheci.

À Marisa Guterres.
Com amor, Deividi Koswoski.