Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

O que restou da escuridão - Capítulo 10 - 29 de Dezembro de 1999

terça-feira, 18 de agosto de 2009 às 10:00
As coisas estavam entrando nos eixos. Parecia que estávamos nos acostumando com os fatos que pareciam deliciar-se com a nossa falta de entendimento perante tal situação.
A chuva caiu muitas vezes nesses dois meses e o que havia para ser limpo, agora, está no seu estado mais claro de compreensão.
As coisas não poderiam estar mais parecidas com um final esperado. Não houve surpresa durante esses dois meses e provavelmente não haverá. Milagres não aconteceram. Ninguém esperou que ela abrisse a boca para dizer que estava bem. Ninguém teve vontade de vê-la bem outra vez. A voz da maioria é a voz de Deus. Não é assim que se fala quando não se tem nada mais a dizer sobre alguma coisa?
Dezembro nunca esteve tão frio como nesse ano e nunca estivemos tão quente no lado de dentro. Afunilaram-se as histórias, as memórias, as lembranças e as esperanças. Afunilaram-se e foram depositadas em uma mórbida caixa de madeira. Sim, Jane está morta. Não havia muito a ser feito, ela estava fadada a este fim. Tudo que podíamos fazer era amenizar a dor da carne, a do espírito é mais difícil.

Ela morreu hoje de manhã. Eu havia chegado há pouco tempo. Nem tive oportunidade de conversar ou despedir-me. Hoje ela decidiu que não queria mais ouvir a voz de ninguém e assim agiu. Partiu sem alarde. A última lágrima ainda estava lá. Talvez tenha chorado pelo fato de não poder mais viver. Talvez pensasse que tinha muita coisa para ver. Talvez tenha chorado de raiva. Eu jamais saberei, acho que ninguém saberá.
O enterro, dentro da medida do possível, foi algo muito bonito. Nem sei se posso falar isso de um enterro, mas foi algo realmente muito bonito. Todos cantaram Famous Blue Raincoat baixinho. Era a música preferida da Jane.
Estavam todos lá. Thiago estava chorando feito criança, ainda não sei se o choro era por causa da Jane ou pelo fato de o Bruno ter ido a Europa com um garotinho de 18 anos. Agora Thiago estava como a Jane um dia esteve. Jamais conseguirá superar o remorso de, por ventura, ter destruído a esperança que ela poderia ter depositado nele.
O único membro da família Folkstore que apareceu para o funeral estava sendo enterrado. Espero nunca ter que encontrar um Folkstore na minha frente.
Ela teve que aprender sozinha. Aprender o que? A sobreviver imersa em uma incontrolável tempestade de corrosivos sentimentos que, vulgarmente, chamamos de vida.
Acho que eu gostaria de tê-la conhecido melhor, talvez até quisesse fazer parte dela. Acho que foi por isso que fiquei aqui. Agora sou parte de Jane Folkstore, como o câncer que a matou.
Sentirei muita saudade. Vai doer muito quando amanhecer o dia e eu perceber que ela não está mais entre nós. Vai terminar de rasgar os pedaços restantes o fato de eu ter perdido a única pessoa que me ouvia.
A Jane era uma aparição no meio do povo das ruas. Às vezes ela parecia um personagem inventado pela minha imaginação. Como se eu quisesse fazer tudo pelas atitudes dela. Talvez eu queira me tornar um personagem.
Acho que, agora, sendo parte dela, eu tenha me tornado um pouco personagem, um pouco divino, um pouco Jane.
Jane parecia-me ser um palito de fósforo. Entende o que eu quero dizer? Quando você risca um palito de fósforo você não pode segurá-lo por muito tempo, ou você solta ou você apaga, se não, acaba por queimar os dedos. Jane era um palito de fósforo. Não sabíamos viver sem ela, não sabíamos soltá-la. Ela queimou nossos dedos e se apagou.
Dizer que ela era apenas uma mulher é o mesmo que dizer que o diamante é apenas uma pedra. E, no fundo, talvez seja.