Perfil de DK southern

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O que restou da escuridão - Capítulo 5 - A família Folkstore, atemporal

terça-feira, 14 de julho de 2009 às 10:00
Não era uma casa que os moradores pudessem se orgulhar de habitar, mas havia tudo que fosse necessário para criar os dois filhos do casal Folkstore. A casa era de cor bege, o que a deixava ainda mais sem vida; ficava na rua 1º de Março, ao lado do N.º 3883 (lembro-me apenas do número da casa ao lado, pois, lá, morava uma de minhas tias). Os pássaros não freqüentavam o jardim, e, as borboletas, já não eram mais vistas. Mesmo com a decadência dos bens materiais, a família Folkstore, possuía um nome respeitado. Todos sabiam onde moravam, e todos, ao passar pela casa, paravam para admirar uma beleza, há muito perdida. Nos áureos tempos, a família, era invejada pela vizinhança, por possuírem as mais belas roseiras já vistas em Novo Hamburgo. Agora, a erva de bicho, tomava conta dos canteiros de flores, as dálias já estavam mortas e, a primavera, seca, como o coração daquela família; da calçada, podia-se ver o telhado e as telhas que faltavam. Tudo parecia estar fora de lugar. Por causa do forte tráfego de automóveis, na rua da frente, a casa já apresentava rachaduras profundas, parte do muro lateral já havia desabado; não se podia ver a cor das balaustradas das sacadas, a ferrugem tomara conta de tudo, sem dizer que faltavam alguns balaústres. Havia buracos na calçada da frente; mas dinheiro não havia para os reparos.
A senhora Folkstore saía todos os dias com seu angorá nos braços, seu marido, o senhor Folkstore, sempre fora alérgico a gatos, mas, sua esposa, jamais se permitiu desfazer-se de seu único amigo naquelas tardes longas e vazias. O pobre angorá era sempre motivo para brigas, talvez, assim, os dois conversassem; talvez, se não fosse, o gato, a casa permaneceria em um silêncio sepulcral.
Havia algo de bom naquela casa, a iluminação fora bem planejada; as janelas eram amplas, o vento tinha caminho livre pelos corredores da casa; a poeira entrava sem empecilho, talvez tenha sido por isso que, a senhora Folkstore, nunca tenha conseguido manter a limpeza da casa. O senhor Folkstore nunca estava satisfeito com os serviços da esposa. Ela nunca estava satisfeita consigo própria. Talvez fora esse o motivo pelo qual comprara o angorá; talvez quisesse alguém que a fizesse companhia; que a ouvisse.
Quando ela estava sozinha em casa, as janelas permaneciam fechadas, detestara desde sempre a luz do sol; nos seus passeios, saía sempre com uma sombrinha de cor preta, coitada, era motivo de risos; alguns sentiam pena da pobre mulher, sozinha, naufragada em seus pensamentos. Dizia que o sol era cruel para sua pele branca, pode ser que sim, mas, não acredito que este era o único motivo; talvez quisesse esconder seu rosto, sua vergonha, sua vida. Os dias, naquela situação, eram longos demais, vazios demais. A perturbação que pairava sobre seus pensamentos, algumas vezes, a deixavam inerte, sem atitude, sem fala.
Ao ver um avião, sobrevoando sua casa, assustava-se; dizia que o ser humano não fora feito para voar, afinal, Deus, não nos dera asas; mas Deus também não nos dera rodas, quanto a andar de carro ela não tinha problema algum – talvez não andasse tanto quanto quisesse, também, a família quase não tinha dinheiro para comer, imagina se teriam dinheiro para comprar um carro. Recusava-se a andar de ônibus, dizia que aquele meio de transporte era para pobres; jamais se permitiu admitir que havia perdido a sua herança, por parte de sua mãe, é claro; jamais trabalhara; recebia apenas uma pobre pensão, pois, seu pai, servira o exército; mas nunca havia dinheiro suficiente; a pensão não bastava para manter o padrão que, a senhora Folkstore, estava acostumada.
O casal dormia em quartos separados, a senhora Folkstore recusava-se a limpar o quarto do marido.
Os dias fluíam calmamente na residência Folkstore; não havia preocupações que necessitassem muita atenção, também pudera, o luxo não pertencia mais àquela família. Se os problemas eram freqüentes? Com certeza! Mas não havia mais tempo disponível para resolvê-los, realmente não havia tempo; a vida estava acabando; o compromisso de criar os filhos já fora cumprido.
O casal orgulhava-se de passear com os dois filhos; pareciam dois lindos anjos, loiros de pele branca, como as nuvens, como as margaridas.
A caçula do casal, desde pequena, mostrava-se arisca; havia ali, uma personalidade rara, algo de indomável, incompreensível. O senhor Folkstore costumava dizer “vamos ter problemas com essa pimentinha”, ele sabia que seria algo fora do controle, algo que teria que ser levado até as últimas conseqüências. A esposa adorava passar as tardes na praça, acompanhada pela filha.
O primogênito, sempre se mostrou interessado pela arte, arte em geral; tinha talento, capacidade, vocação. O senhor Folkstore jamais gostara das atitudes do filho; no início, esse era o principal motivo de brigas do casal.
As crianças sempre estudaram nas melhores escolas que o dinheiro pudesse pagar – naquela época, o senhor Folkstore, ainda não havia contraído o vício no jogo, o que levaria a família à falência -, Sempre se orgulhara de poder pagar um ótimo ensino para sua invejada prole.
O primogênito do casal saía-se bem em tudo relacionado à arte, contudo, no resto, deixava a desejar. A caçula, pelo contrário, saía-se bem em tudo que fizesse, incluindo a arte; parecia ser a família perfeita, torpe engano, estava bem longe disso.
Os filhos cresceram e foram em busca de suas próprias vidas, deixaram a casa dos pais e, por isso, instalou-se o vazio, o vácuo, o nada, o ninguém.
Com os filhos já fora de casa, as conversas, tornaram-se ainda mais escassas, Antes do marido chegar em casa, a senhora Folkstore preparava o jantar; nem sempre havia muita coisa pare se fazer, mas ela sempre fazia com muita elegância; as conversas eram sempre as mesmas.
- O Bruno ligou?
- Não, ainda não.
- Eu não sei mais o que fazer com esse menino.
- Você não quer saber da sua filha?
- Não, e já disse para não manter contato com ela. Eu te proíbo!
- Ela ainda é minha filha.
- Isso não tem mais importância. Já disse que não quero mais ouvir o nome dela dentro dessa casa.
- Desculpe. Eu vou trazer o jantar.
- Faça isso.
Essa era a vida do casal.
Depois do jantar, a senhora Folkstore lavava a louça, enquanto isso, o marido, lia o jornal, sentado na sala, em uma poltrona estampada, fora de moda e rasgada.
Depois de todas as tarefas cumpridas, os dois dirigiam para seus respectivos quartos, fora assim desde sempre.
Os dias se repetiam; acabaram por cair em uma hipnótica rotina, jamais conseguiriam sair de lá; estavam unidos para sempre, pelo comodismo, até as sepulturas seriam lado a lado.
Os dias eram difíceis, os lençóis no varal, deprimiam a senhora Folkstore; aquilo era trabalho de serviçal, e ela, não tinha mais nenhum.
Um dia, na mesa de jogo, o senhor Folkstore decidiu apostar a própria casa; já havia perdido todo o resto, só não o fez porque Bruno foi buscá-lo; encontrou o pai envolvido por uma nuvem, formada pela fumaça dos cigarros e charutos. Não podia acreditar naquela situação. A prova de que sua família estava decadente, jazia sentada naquela mesa de apostas, inacreditável – pensou. Ao chegar em casa, naquela noite, encontrou uma esposa decepcionada. A vergonha era tanta que nem pôde olhá-la nos olhos Aquele foi o início da depressão da senhora Folkstore, não que ela fosse feliz antes disso, não. Mas aquela noite pode ser considerada o início do fim. A esposa, na tarde seguinte, decidiu abrir um buraco na parede; queria colocar tijolos de vidro, assim poderia passar as manhãs lendo a Bíblia, e assim, economizaria na conta de energia elétrica.
- É só isso que você sabe fazer?
- Algum problema?
- Só sabe ler essa porcaria?
- Não perturbe a minha paciência.
A mobília era demasiado antiga, fora de moda. Os cantos, da mesa da sala de jantar, já estavam esfolados, arranhados, destruídos; todos os móveis tinham, pelo menos, um arranhão visível, algum machucado, alguma marca. Toda a mobília tinha um cheiro estranho, poderia ser pelo fato de que, o mofo, já estava entranhado nas fibras da madeira. A única coisa que poderia ser feita, era livrar-se de tudo aquilo. E onde arrumar dinheiro para os novos móveis? Aqueles, já não eram tão desagradáveis assim.
- Pegou o meu vestido na lavanderia?
- Não, não tinha dinheiro para pagar.
- Eu só te peço coisas simples. É muito difícil fazer o que te peço?
- Você não faz nada o dia inteiro e todos os dias, pegue seus vestidos então.
A senhora Folkstore, insistia em mandar seus vestidos para a lavanderia; peças caras, de muito bom gosto, mas fora de moda; todas as suas roupas, sem exceção, estavam roídas por traças; as camisas brancas já estavam amarelas; todas as roupas já haviam perdido o brilho, o luxo, a elegância; mesmo assim, as roupas eram motivo de orgulho para ela. Talvez fossem as lembranças dos tempos em que o único problema, em relação ao dinheiro, era como seria gasto; uma viagem a Paris, um cruzeiro pelo Atlântico Norte...
- Preciso fazer uma viagem.
- Para onde?
- Vou ver alguns negócios.
- Negócios? Acredito que você não saiba o que vem a ser isso.
- Sempre muito irônica.
- Você está viajando todos os finais de semana.
- É verdade, mas isso é problema meu.
A senhora Folkstore, aproveitava as repentinas viagens do marido, para sair da realidade, para exercer a sua loucura, há muito trancafiada dentro do peito.
Vestia a roupa mais extravagante que tinha; usava todas as jóias (ao mesmo tempo), jamais quisera desfazer-se das jóias, talvez quisesse deixar de herança para Jane. Naquelas noites, com as jóias e as roupas roídas por traças, ela acendia dezenas de velas e as espalhava por toda a casa; sentava na poltrona do marido e bebia uísque em um copo com a borda quebrada; o chapéu deixava o seu rosto obscuro, não que não fosse, mas, com o chapéu, ficava ainda mais. Qualquer pessoa que entrasse na casa e visse uma cena daquelas, provavelmente, sairia correndo; até mesmo seu marido; mas ele não iria voltar tão cedo, estava “internado” – era assim que a senhora Folkstore se referia aos puteiros onde o marido costumava ficar durante dias; ela sabia que ele a traía; nunca cobrou fidelidade, afinal, nunca houvera amor -, ela sabia que ele não voltaria, pelo menos não nos próximos dias, e isso, a confortava.
Naqueles dias, quando ficava sozinha, costumava encher a cara e dormir no chão; acordava no dia seguinte com um gigantesco mau hálito. Se escovava os dentes? Claro que não, não beijaria ninguém, talvez jamais beijara. Naqueles dias, o angorá, de nome Quincas, ficava sem comida e sem água; ficava o tempo todo no colo da dona – isso quando ela não estava atirada no chão do banheiro, vomitando para todos os lados; já dormira dentro de uma poça de vômito.
Seria aquele o fim da senhora Folkstore? Não, ela jamais se deixaria morrer de uma forma desvairada como aquela; queria morrer quentinha, enquanto dormia.
Os três dias se passavam, e o senhor Folkstore estava de volta a sua casa.
As coisas estavam como sempre; parecia que nada havia acontecido; ele não percebera nada, e ela, obviamente, não falara nada; de uma forma, um tanto quanto torta, as coisas estavam normais.
- O Bruno ligou?
- Não, faz tempo que eu não falo com ele.
- Onde anda esse menino?
- Eu queria saber.
Bruno, o primogênito, é irmão de Jane, a caçula. Sempre foram bons amigos; um dia, não se sabe o porquê, brigaram, e a partir daquele fatídico dia, jamais se falaram novamente.
Com o passar do tempo Bruno cresceu, desistiu do mundo das artes e tornou-se um administrador de empresas – um verdadeiro orgulho para o pai. Jane estudara letras; tornara-se professora; trabalhava com adolescentes; as mães de seus alunos, algumas vezes desabafavam com ela; era pura, gentil, educada, por isso, transmitia confiança. É difícil entender como, uma pessoa tão agradável, conseguiu a inimizade de seus parentes. Motivos havia, mas somente os membros da família sabiam quais eram.