Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

O que restou da escuridão - Capítulo 7 - Jane e a mãe de Pedro, 21 de Junho de 1995

terça-feira, 28 de julho de 2009 às 10:00
- Eu poderia falar com a professora Jane?
- Sim, ela está na sala 808, é neste mesmo corredor.
- Obrigada!
Ela andou pelo corredor, olhando para os números nas portas. Estava com uma expressão de preocupação; não sabia do que se tratava, apenas fora chamada na escola onde seu filho mais velho estudava. Estava torcendo para que fosse apenas uma reunião de pais e mestres; poderia ser, mas, mesmo assim, estava preocupada.
- Boa tarde! A senhora é a professora Jane?
- Sim, sou eu. A senhora deve ser a mãe do Pedro.
- Sim, sim senhora.
- Sente-se e vamos conversar.
- É muito grave?
- Não, é apenas uma preocupação minha.
- Melhor assim.
- Bem, como professora, não pude deixar de notar que, o Pedro, está muito distante. Ele era um bom aluno, e tenho certeza que continua sendo, mas, ultimamente, anda alheio aos estudos, não acompanha minhas aulas; percebo também, que anda preocupado com algo que não quer dizer. Veja bem, não estou querendo meter-me na sua vida nem na de seu filho, mas como professora, procuro construir futuros pensadores, e, com isso, devo sim, preocupar-me com as atitudes daqueles pelos quais tenho verdadeira estima. Então, chamei a senhora aqui, para saber se o Pedro está tendo problemas em casa. Está acontecendo algo errado, alguma coisa diferente, algo que possa ter causado alteração de humor, de vontade?
- Eu não sei qual é o motivo e a senhora não tem tempo para me ajudar, deve estar atarefada com o seu trabalho.
- Não, não, muito pelo contrário, este é o meu trabalho. Devo ajudar os jovens, entender o que acontece e tentar encontrar soluções para os seus problemas, portanto, tenho muito tempo para te ouvir, afinal, foi para isso que lhe chamei aqui.
- Então está certo.
A minha vida nunca foi fácil. Tenho seis filhos com cinco homens diferentes; eu não quis assim; a vida quis. Eu sou pobre, não tive estudo. Aprendi levando tapa na cara, e não é eufemismo, aprendi assim mesmo. Eu vim de uma cidade muito pequena do Nordeste; viajei durante dias para chegar ao sul. Ouvia-se que aqui era a terra das oportunidades, dos empregos; devo ter ouvido errado, agora é tarde demais. Passei oito dias dentro de um ônibus, o que eu tinha? Esperança. Trazia comigo apenas sonhos, vontades e todas as quimeras que uma moça pobre pode ter. Tinha esperança e nenhum dinheiro no bolso. Chegando aqui eu arrumaria um emprego de carteira assinada, assim, reconstruiria a minha vida, aos poucos. Vivi este sonho durante uma semana, nesses sete dias eu não tive o que comer e nem onde dormir, até então eu estava sozinha, e estando sozinha eu me virava. Engravidei do primeiro “príncipe encantado”, o pai do Pedro; quando ele soube foi embora, me largou na rua, sozinha, com sede, com fome e grávida. Tive que fazer a minha primeira escolha: Ter ou não o meu filho. Pois bem, o tive, não me arrependo, e a vida ficou um pouco mais difícil, não tinha problema, eu ainda possuía meus braços e minhas pernas e, com isso, eu poderia trabalhar e educar meu filho. O meu alarme de desespero era o choro do Pedro, não tive leite e não estava conseguindo dinheiro para comprar. Quando eu pedia ajuda pelos bares e restaurantes, a única coisa que eu ouvia era um seco e agressivo “não”. Eu poderia ter desistido, entregado meu filho para adoção, até pensei em saltar de um viaduto com ele nos braços. Decidi que se eu quisesse me matar eu poderia, mas eu não tinha o direito de fazer isso com o Pedro; tão pequeno, tão frágil, com uma vida inteira pela frente, eu realmente não tinha esse direito; desisti, desisti de mim, mas eu ainda precisava criar meu filho, os dias não foram fáceis como pensei que seriam, tudo bem, meus braços e pernas ainda estavam comigo.
Eu precisava acreditar que eu era forte, que eu era capaz, e só por isso que ainda estou aqui. Não soube administrar minha vida, e acabei por interferir na vida dos meus filhos; tento mantê-los fora de tudo isso, acho que eles não precisam ficar sabendo e, talvez por isso, acabo por magoá-los cada vez mais.
- E os seus pais, os avós do Pedro? Como ficam eles nessa história toda?
- Como eu já havia dito para a senhora, eu sou de uma pequena cidade do Nordeste. Eles não sabem e talvez nem quisessem saber, e se quisessem, não poderiam, estamos muito longe.
Desde pequena a minha vontade era estudar e conseguir um emprego melhor do que aquele que meus pais tinham. Vontade normal, simples, mas não para os meus pais; para eles isso era coisa de comunista, coisa do demônio, não os culpo, crescendo naquele fim de mundo, o importante é ter feijão e arroz na mesa e saúde para trabalhar na roça. Saúde eu tinha, mas não tinha vontade, não queria acabar como eles, com o rosto rachado pelo sol. Eu sofri muito saindo de casa e, hoje, penso que, talvez as rachaduras provocadas pelo sol, não eram tão ruins assim. Eu teria rugas, mas, por outro lado, teria paz, para mim e para os meus filhos; talvez o sol não fosse tão cruel como eu pensava, tarde demais. É necessário fazer escolhas, eu escolhi, acabei por deixar uma vida pacata para trás, hoje, tudo que eu queria era a casa dos meus pais, não há lugar no mundo que possa ser comparado ao nosso verdadeiro lar. A casa era simples, chão batido, paredes de barro e telhado de palha, mas aquele era o meu lar, de uma forma ou de outra eu sabia que aquilo também era meu, era pouco, mas, hoje, poderia me bastar. Como eu disse antes, tarde demais. Eu escolhi e deixei para trás, tudo bem, meus braços e pernas ainda estão aqui. Eu ainda tenho o poder de escolher e de mudar o que está errado na minha vida.
Passei por momentos ruins, momentos que eu não desejaria para ninguém. Alguém se importou? Não, somente eu, quando precisei de caridade não tive, mas não me tornei amargurada. Tento fazer as coisas por mim e pelos meus filhos, se alguém me pedir ajuda não negarei, não pretendo fazer para os outros o que fizeram para mim, sou assim. Sou um ser errante, como todos os outros. Aprendi com a vida a ser tolerante e paciente. Precisei ser muito tolerante para estar aqui hoje. Não posso reclamar, tenho seis filhos que são meus anjos, minha razão de viver e, é por eles, que ainda me sujeito aos desprazeres dessa vida.
Deus esqueceu de mim. Várias noites eu rezei pedindo ajuda, o silêncio foi a resposta mais concreta que recebi. Talvez Ele queira isso para mim, talvez eu tenha que aprender, apenas acho que Ele escolheu, para mim, o pior jeito de aprender as coisas, tudo bem, Ele sabe o que faz; talvez eu tenha que ser ainda mais tolerante, difícil, mas possível.
Onze meses depois do primeiro “príncipe encantado”, veio o segundo. Eu resolvi dar uma chance para mim mesma, resolvi me apaixonar. Eu realmente desejava ser amada, eu precisava daquilo, eu precisava me sentir desejada.
O segundo “príncipe encantado” é o pai do meu segundo filho. Fiquei dois meses com ele, foi o suficiente para aumentar a tragédia da minha vida; não me entenda errado, filhos são uma dádiva, mas não naquele momento, eu não estava preparada, eu não tinha casa e nem emprego. Você acha que algum dos “príncipes encantados” ligou? Você acha que algum deles, pelo menos um, perguntou como eu estava, se eu estava precisando de alguma coisa ou se os filhos estavam bem? Não, sinto informar, nenhum quis saber como a situação estava, particularidade masculina. Talvez seja por isso que são as mulheres que gestam os filhos, e não os homens, talvez Deus saiba que somos nós que vamos cuidar, criar e alimentar. Talvez Ele conheça bem a criação Dele e, por isso, é que os homens entram com dois minutos de prazer. Eles têm o prazer físico, banal, etéreo, volátil, nós, mulheres, ficamos nove meses gerando alguém que irá nos amar incondicionalmente, esse é o meu consolo, eu preciso dele.
Passei um ano de casa em casa, quando não conseguia pagar o aluguel, era jogada na rua, na calçada, na sarjeta. Depois desse ano, o segundo “príncipe” apareceu novamente. Pediu desculpas, disse que estaria comigo e que gostaria de dar uma boa educação para o filho. No início eu tentei resistir, mas pensei que seria a chance de dar um pai para os meus filhos, eles precisavam de uma figura masculina, alguém para seguir o exemplo. Estava tudo perfeito, tudo estava exatamente como eu imaginei, mas durou pouco, na verdade, durou muito pouco.
Ele começou a chegar tarde todos os dias, e se eu perguntasse, com certeza, no dia seguinte, eu estaria com o olho roxo. Sim, ele batia em mim. Algumas vezes batia tão forte que eu perdia os sentidos, achava que iria morrer, sangrava muito. Quando acordava meus filhos estavam chorando, com fome, com frio. Mais uma vez um “príncipe encantado” tornou-se o vilão da história da minha vida. Talvez eu não tenha sorte no amor. Fato é que, depois de dois meses, ele foi embora, não sem antes me deixar com mais um filho. Agora eram três crianças para alimentar e educar. Eu poderia Ter jogado tudo para o alto, desistido de tudo, mas sou nordestina, o meu povo tem esperança, força de vontade. Durante os meses de seca, de fome, de miséria, o que nos mantém vivos é a esperança e a fé de que, cedo ou tarde, Deus mandará chuva para ressuscitar a terra e fazer crescer o feijão. Com essa fé intrínseca, herança do meu povo, eu não desisti. Eu precisava encontrar um jeito de manter os meus filhos vivos. E, partindo desse ponto, a história toma outro rumo.
Resolvi “cair na vida”, virei “mulher de vida fácil”. Não é assim que se diz? “Mulher de vida fácil”? Não foi assim que a sociedade me nomeou? Desde pequena eu não sei o que é vida fácil, e não seria me prostituindo que eu iria descobrir o que é.
Demorei uma semana para resolver ir para a rua, eu não queria perder a dignidade, mas quando o meu bebê começou a chorar por causa da fome, percebi que a minha dignidade não encheria a barriga de ninguém, então, fui à rua.
Foi um dos piores dias da minha vida, abrir a porta da minha casa foi uma tarefa demasiado dolorosa, ao pisar na calçada, percebi que deveria deixar os meus sentimentos em casa, foi o que fiz. Eu lembro de cada segundo daquela noite, cada bêbado, cada esquina, cada bar.
Fazer sexo não é difícil, para isso basta abrir as pernas. Difícil é oferecer-se para um homem que você nunca viu na vida, mas a gente se acostuma, a necessidade fala mais alto e a barriga dos meus filhos também.
Aos poucos fui ficando fria. Fingia prazer para não perder o cliente, às vezes era necessário fingir para não apanhar; os homens precisam sentir-se como garanhões, nojento, eu sei. Essas cicatrizes nos meus braços são queimaduras de cigarro, tem gente má nesse mundo. A única coisa que não podia acontecer, quando eles começavam a bater em mim, era cair no chão, e se isso acontecesse, eu, provavelmente, acordaria em um hospital, com uma perna e quatro costelas quebradas, como já aconteceu.
Levei muito tapa na cara e muito puxão de cabelo para aprender a chupar, acho que aprendi, quanto a isso, não ouço mais reclamações. Se eu já fui estuprada? Muitas vezes. Se a polícia fez alguma coisa? Minha querida, quando se é prostituta, vagabunda, “mulher de vida fácil”, como dizem, a gente não tem direitos, somos apenas mercadorias com defeito e, por isso, precisamos nos sujeitar a todo tipo de covardia. Uma vez eu fui fazer uma denuncia, o policial disse que estupro é uma mulher que desiste na hora “H”, depois disso resolvi agüentar.
Nunca vou esquecer a primeira curra, pensei que teria as entranhas arrancadas de dentro de mim, foram dois de uma só vez, naturalmente, a primeira foi na base da força, na verdade eu não queria, eles me obrigaram.
Não sei quem são os pais dos meus três últimos filhos, a vida se encarregou de escondê-los bem. São filhos da vida, da noite, da profissão.
Tinha dias que eu nem conseguia sair da cama de tão cansativa que tinha sido a noite anterior. O máximo de homens que eu já consegui atender em uma noite foram treze, noite difícil aquela, mas não houve reclamação.
A vida nas ruas é difícil, temos que brigar com as outras meninas, às vezes é necessário disputar com o braço o melhor lugar na calçada, o melhor cliente.
É muito cruel a vida de uma prostituta, a senhora não deve saber o que é passar fome, apanhar de namorado bêbado e ser queimada por cliente agressivo. A senhora tem rosto de princesa, deve ter nascido em uma boa família, teve oportunidades de estudo, de empregos. Deve ser muito bom ter uma vida assim.
- Devo dizer que muitas vezes reclamei da vida que eu tinha, mas agora sei o quão abençoada fui. Jamais poderia imaginar que tantas desventuras fossem capazes de acontecer com a mesma pessoa.
Não vou fingir que não entendo o que está acontecendo com o Pedro, não. Mas mesmo assim desejo ajudá-lo a melhorar, quero que ele tenha as oportunidades que a senhora não teve. Penso que dessa forma, talvez, eu esteja trazendo um pouco de alegria para a sua história, talvez eu possa ajudar a escrever um final feliz para a sua vida, talvez.
- Eu fico muito agradecida pelo que a senhora está fazendo pelo meu filho, espero que, de alguma forma, eu consiga, um dia, retribuir tudo isso.
- Não será necessário. Como o Pedro costuma ocupar os seus dias?
- Para dizer a verdade, eu chego muito cansada em casa, quase não tenho tempo para conversar com meus filhos. Sei que o Pedro nunca foi um menino normal, sempre gostou muito de ler, preferia passar as tardes lendo do que jogando futebol, às vezes, passa a tarde inteira no topo de um ipê que tem na beira do rio que passa em frente a minha casa. Certa vez perguntei o que fazia naquela árvore. Disse que, depois que os meninos terminavam de jogar bola, lavavam a as mãos no rio, bem ao lado de uma saída de esgoto. Disse que gostava de ver como as ratazanas e os meninos dividiam o mesmo espaço, achava poético; a podridão e a racionalidade curvando-se para a natureza – palavras dele.
Eu sinto muito orgulho do meu filho. Espero que ele termine os estudos e siga uma boa profissão, uma que dê futuro para ele, acho que essa é minha última vontade, minha última alegria, minha última esperança.