Perfil de DK southern

Passar pela história, sem marcar a vida de alguém, sua vida terá sido vazia. Passar pela vida, sem se quer ter marcado a trajetória de alguém, a sua própria trajetória não terá referências. Construir a sua trajetória através das referências de alguém, sua jornada será descartável. Descartar as referências de outro fará com que sua caminhada seja construída sem uma base relevante.

O que restou da escuridão - Capítulo 6 - Thiago e Bruno, 26 de Junho de 1995

terça-feira, 21 de julho de 2009 às 10:00
- Você sabe que se vier comigo tudo poderá ser diferente, tudo será diferente.
- Eu estou muito cansado de toda essa situação, não consigo mais pensar. Estou me sentindo sufocado, com vontade de gritar, de chorar.
- Você pode não acreditar, mas eu sei como se sente, já passei por isso. Foi difícil no começo, mas depois passa. Tudo acaba passando.
- Pois é, eu sabia que não seria fácil, mas, mesmo assim, decidi ir em frente. Eu jamais poderia imaginar que as coisas tomariam esse rumo, jamais. Quando chegamos a esse ponto, temos a sensação de que tudo parece ter dado errado, no inicio parecia ter sentido, agora, não sei mais se tem. Não havia sentido algum em tudo aquilo. Eu não queria ter sido o causador dos tormentos de sua irmã, não queria.
- Tudo é passado agora. Ela teve que aprender a conviver com a situação, teve que aprender a administrar os próprios sentimentos. Quem saiu perdendo nessa história fui eu, eu fui o único perdedor. Não vou dizer que me arrependo, não, mas, de alguma forma, as coisas poderiam ter tomado rumos diferentes. Eu não planejei todas essas desventuras e não alimentei as quimeras de ninguém, mas eu queria ter protegido ela de tudo isso. Sempre tentei ser uma pessoa boa e, no final da história, acabei me tornando o vilão da minha própria família.
- Eu sei que o seu pai jamais aceitará a nossa situação, contudo, eu gostaria de poder construir uma vida com você, eu gostaria de poder sair na rua e segurar a sua mão, queria poder não sentir medo dos outros, gostaria de ter paz, de ter alívio, gostaria de estar alheio.
- Não podemos desistir agora.
- Eu sei.
- Lutamos tanto por isso, rompemos com nossos amigos, traímos as nossas famílias, agora, tudo isso, não pode ser deixado de lado.
- Eu sei, eu sei, mas isso tudo é tão cruel, estamos construindo a nossa felicidade em cima da tragédia sentimental dos outros, isso não parece justo, não parece.
- Não parece e não é, entretanto, tivemos que lutar, fizemos uso das armas que nos pertenciam, e, em uma guerra, sempre tem alguém que perde, alguém que morre.
- É disso que eu estou falando. Não te parece injusto que, para que duas pessoas possam ser felizes, outras tantas precisem sofrer? Como eu vou poder estar plenamente feliz com isso? Quando eu vou me sentir bem? Será possível esquecer isso tudo que passou? Entende? Eu não sei se posso ser completamente feliz, sabendo que quem eu tanto quis bem, hoje, sofre. E a Jane não teve a chance de ter uma boa explicação, uma satisfação cabível.
- Eu te entendo, mas não partilho dos mesmos pensamentos, como eu disse, isso é um certo tipo de guerra.
- Você diz que é uma guerra, mas quando ela foi avisada que o combate começaria? Quando você permitiu que ela tivesse tempo para escolher as suas armas? É isso que eu quero dizer, não foi justo, sob nenhum aspecto. Ela nem sabia que precisaria se defender.
- Eu entendo as suas preocupações.
- Não, acho que não entende.
- Sim, entendo.
- Não, não falando desse jeito.
- Veja bem, eu não quero começar uma discussão com você, eu realmente não quero. Posso te ouvir e tentar te aconselhar, mas eu não quero perder o meu controle, hoje não.
O quarto estava escuro, os copos de uísque estavam vazios, os cinzeiros, cheios. Os lençóis estavam amarrotados, por mais que, agora, estivessem discutindo, ainda havia cheiro de paixão, amor, segredos, ainda havia cheiro de sexo.
Um quarto barato de um hotel freqüentado por travestis e prostitutas. Ficava na rua Lindolfo Collor, em São Leopoldo. O hotel não tinha uma fama muito boa, as pessoas que viviam ao redor, sabiam o tipo de pessoas que o freqüentavam.
Era necessário disputar espaço com as baratas, os ratos eram temidos, não tinham medo das pessoas, quando alguém se aproximava, eles atacavam; os únicos perigos irracionais eram os ratos e as baratas, mas não eram os únicos perigos. Algumas vezes era necessário desviar de algum louco empunhando uma faca, não era raro, várias prostitutas já haviam morrido ali, mas era o único lugar que eles podiam freqüentar, afinal, a sociedade respeitável, nem passava perto daquele hotel.
As paredes do quarto eram cobertas por mofo, sinais de infiltração e pela falta de reboco, há muito tempo avariado. O cheiro de umidade e de cachorro molhado era quase insuportável, cachorro não havia, o cheiro vinha dos ratos, e não eram poucos. Se houvesse silêncio, era possível ouvir as ratazanas andando pelos tubos de ventilação.
Havia, em todo o lugar que se olhasse, algum objeto decorativo que exalava histórias de outra época, obviamente, todos estavam cobertos por uma espessa camada de poeira, estavam em péssimo estado de conservação, mesmo assim, nos remetia ao seu antigo glamour, talvez aquele não fosse um lugar tão ruim.
Aquele quarto, afinal, ficavam sempre no mesmo, servia como esconderijo, refúgio; ali eles podiam ser reais, verdadeiros, podiam colocar em prática as reais vontades do ser humano, e não sentiam vergonha por isso, não ali. Por mais que o quarto não possuísse características para um romance de Shakespeare, ele servia como um grito de liberdade, um transbordar de alívio.
Os lençóis eram brancos, possuíam manchas amarelas; o assoalho já estava todo arranhado e tomado por cupins. Os balaústres da pequena sacada estavam enferrujados.
O banheiro estava em estado deplorável; os azulejos eram azuis, havia manchas pretas cobrindo a pia. Para a vaidade, havia apenas um espelho quebrado; a luz do banheiro, quando ligada, não parava de piscar, o que tornava o ambiente ainda mais sombrio, com uma tensão de filme de terror.
- Podemos parar de brigar?
- Sim, mas você sabe como isso me chateia.
Beijaram-se, como se precisassem matar a sede na saliva do outro, como se precisassem do ar contido nos pulmões do outro; beijaram-se com tanto ardor que pareciam fazer parte de um único corpo.
- Eu te amo.
- Eu sei disso, eu preciso muito de você.
- Eu sei, eu sei.
- Sem você eu não vou conseguir suportar as minhas torturas mentais, os meus carrascos sentimentais.
Bruno conhecia muito bem aquele hotel, até mesmo antes de conhecer Thiago. Muitas vezes dormiu lá com algum travesti ou com algum homem que, como ele, precisava manter os desejos sexuais escondidos dos outros.
Bruno gostava daquela podridão, daquela sujeira, gostava de se sentir como um animal no cio, precisava daquele cheiro, daquelas baratas, daquela umidade, precisava, até mesmo, das ratazanas.
- Eu não sei por que você sempre me traz nesse pulgueiro.
- É mais excitante, é mais vulgar.
Bruno gostava da vulgaridade, gostava da luxúria das ruas, adorava aquela vida mundana, era quase como uma droga, um vício, uma necessidade vital.
- Podemos começar a freqüentar outro tipo de ambiente?
- Talvez sim, mas aqui estamos seguros, aqui ninguém nos verá, não seremos descobertos.
- Eu não quero ter que me esconder dos outros, eu não quero viver como esses ratos e baratas. Sinto-me como se tivesse sido tomado por cupins, sinto como se algo estivesse me consumindo, me corroendo por dentro.
Thiago era romântico, gostava de dar e receber flores; acreditava que, algum dia, teria uma vida a dois com Bruno; restava saber se Bruno também pensava assim.
Thiago contava os dias para os seus encontros. O lugar marcado era sempre o mesmo, a portaria do hotel.
Quando a hora se aproximava, sentia como se o coração fosse saltar pela boca. Gostava daquela sensação; dizia que era paixão, desejo, enfim, um certo tipo de necessidade, de amor.
- Quer mais uísque?
- Não, daqui a pouco eu tenho que ir.
- Não vista a camisa. Adoro quando você fica sem camisa, vestindo apenas uma calça jeans, adoro ver seu corpo contra a luz da rua enquanto fuma um cigarro; daria uma ótima pintura.
- Você vai poder me ver assim todos os dias, só precisamos esperar as coisas se encaixar, a poeira baixar.
- Concordo.
- Eu gosto quando você fica deitado desse jeito, com as mãos sob a cabeça, com esse olhar ingênuo. Parece um anjo.
- Um anjo condenado ao inferno.
- Não fale assim.
- Mas é assim como me sinto.
- Isso vai passar.
- Eu espero que sim.
- Bem, eu preciso ir.
- Tão cedo?
- Sim, mas amanhã eu te espero aqui, no horário de sempre.
- Está bem.
- Eu pago o quarto.
- Vou me vestir, depois vou embora.
- Tchau, eu te amo.
- Eu também, tchau.